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12|OUTUBRO|2001
música|clássicos
O mestre
Leonard Cohen deveria aprender com a discípula Suzanne Vega
Leonard
Cohen e Suzanne Vega têm novos álbuns: Tem New Songs e Songs of Red and Gray.
Mestre e discípula. Qual é um e qual é outro? É diferente o Outono de ambos.
Cohen renunciou ao céu e afirma-se feliz. Vega continua a piscar, inquieta,
mordida pelas abelhas. O ferrão asiu do espírito dele para se cravar na alma
dela. Ele cala. Ela dança.
Antes de denegrir o novo álbum de Leonard
Cohen e, consequentemente, ser alvejado por todo o tipo de impropérios e outros
projéteis verbais pelos admiradores incondicionais deste cantor canadiano que
acabou de lançar “Ten New Songs”, devemos confessar que nele sempre apreciámos,
em primeiro lugar, o poeta. A música sempre desempenhou na sua obra um lugar
secundário, espécie de lenga-lenga melódica que acabou por se institucionalizar
como estilo.
É verdade que o velhote que há oito anos
aderiu à “filosofia” zen, passando a viver como um monge-cozinheiro no Mount
Baldy Zen Center, mas que não dispensa o seu copito (“I fought against the
bottle/But I had to do it drunk”, diz um dos versos de “That don’t make it junk”,
uma das canções do novo álbum), tem jeito para lidar com as palavras, ainda
que, mesmo neste aspeto, “Ten New Songs” esteja longe de evidenciar a
acutilância, por vezes apocalíptica, dos primórdios cohenianos, em álbuns como
“The Songs of Leonard Cohen”, “Songs from a Room” e “Songs of Love and Hate”.
É um disco de textos simples e música
mais simples ainda, nalguns casos a roçar a indigência. Como sempre tem
acontecido no passado, mas este disco provoca ainda mais, ou se adora ou se
detesta a forma como Leonard Cohen expõe, de forma risível, a sua luz, aos
olhos alheios. Já foi intolerável, pela intensidade da exposição, este
confronto.
Ao fim de 66 anos de vida desenrolada com
a persistência de uma contínua viagem em direção ao silêncio, ficou pouco. Para
alguns, o essencial. Para outros, o óbvio, de mãos dadas com o lugar-comum. Mas
essa é afinal a etapa última da viagem de auto-descoberta e da renúncia de si
próprio. Leva-se uma vida para dizer do fundo do mar o que o comum dos mortais
diz de cabeça no ar. Verdades evidentes, ridículas, simplistas. A diferença
reside apenas na maneira e na vida de quem as diz. Entre o idiota e o santo, a
gramática é a mesma. O sopro do Verbo é que é diferente.
Recentemente Cohen abandonou o mosteiro
onde residiu durante quase uma década, reconhecendo a ausência de uma
verdadeira vocação espiritual. Renunciou. Curioso: o zen, via do paradoxo,
acende-se precisamente quando aquele que o persegue o abandona, o ter cede ao
ser. A mão fica cheia ao desistir de segurar. Neste aspeto, Leonard Cohen não
tem feito outra coisa senão prosseguir uma coerência que – faça-se-lhe justiça
– sempre pautou a sua obra. A simplicidade de “Ten New Songs” desarma. Mas
também incomoda. E pode ser irritante. A própria capa do disco mostra o velho
cantor e compositor com uma expressão imbecilóide no rosto. Claro que também
podemos ver na fotografia a serenidade de um bonzo. Ainda aqui, tudo depende,
da intensidade ou da mentira do olhar.
A vida negra. Dito isto, que até soa a elogio, feliz
ou infelizmente, “Ten New Songs”, feito em estreita colaboração com duas
mulheres (as mulheres sempre preencheram os tempos vivos e os tempos mortos de
Cohen) – Sharon Robinson, produtora e co-autora de todos os temas e Leanne
Ungar, engenheira de som –, se descolado da lenda e da aura de profeta que
sempre rodeou o canadiano de voz de gato-pingado, soa a uma papa vagamente
“soul” armada sobre programações a trote do cansaço.
O tema central é, como sempre foi e
continuará a ser até chegar o momento de Cohen optar em definitivo pelo
silêncio absoluto, o amor. Manda a regra imutável da pop e da arte em geral – o
amor infeliz. As fugas, as desistências, as traições, as incompreensões, enfim,
todo o conjunto de emoções dolorosas que o ser amado nos inflige, sabe-se lá
por que motivações maquiavélicas, e nos faz ser desgraçadamente humanos.
Em “Ten New Songs” Leonard Cohen continua
a tentar perceber as razões da avalanche. Faz várias perguntas, quase todas a
si próprio, e as respostas, à míngua de uma revelação, surgem na forma de canções.
Mas as perguntas de “Ten New Songs” soçobram no vazio e o vento do desalento
não deixa de soprar. Ao mesmo tempo que faz o trabalho de limpeza da introspeção,
Cohen interroga o advogado do céu ou, na sua ausência, do inferno, justificando
as suas maleitas com o mal universal e a indiferença de um Deus que implica com
ele e lhe faz – ou fez – a vida negra. Daí a simbologia e estrutura poética
religiosa (bíblica?) impressa em canções como “Here it is”, “Boogie street”
(ainda o vinho, na sua dupla dimensão dionisíaca e litúrgica…) e “The Land of
Plenty”. Não há melhor maneira de tornar universal a dor individual.
A “coroa”, o “vinho” e a “cruz” que
Leonard Cohen depõe em “Here it is” passam por ser os sinais de uma agonia que
finalmente encontrou plausibilidade e redenção na visão desprendida de quem, já
no crepúsculo da viagem, nada mais deseja senão compreender. Mas daí até versos
como “May everyone live/And may everyone die/Hello, my love/and my love,
goodbye” (em “Here it is”), sobre caixa de ritmos cha-cha-cha, serem tomados
como novo evangelho dos deserdados do amor, vai uma certa distância…
O próprio Cohen, em 1988, a propósito das
conotações religiosas da sua música, afirmara: “Pensei que poderia espalhar
luz, iluminar o meu mundo e o dos que estão à minha volta, que poderia seguir o
caminho dos Bodhisattva, o caminho do serviço, da ajuda aos outros. Acreditei
que conseguiria mas não fui capaz. Este é um terreno no qual os homens mais
fortes, mais corajosos, mais nobres, mais bondosos, mais generosos do que eu,
homens que capazes de cometer feitos extraordinários, se despedaçaram ao longo
do caminho. Quem lida com o Sagrado acaba por ser dilacerado”.
Treze anos volvidos, no novo álbum, faz a
confissão do fracasso, em “The land of plenty”: “Na verdade, não tenho
coragem/Para permanecer onde devo permanecer/Não tenho realmente
temperamento/Para deitar uma mão amiga”.
“The land of plenty” expõe de forma límpida
o dilema: “Don’t really know who sent me/To raise my voice and say:/May the
lights in the land of plenty/Shine on truth some day” e, mais íntimo, “Don’t
really know why I came here/knowing as I do/What you really think of me/What I
really think of you”. Quer dizer, atendendo ao cansaço e à idade, ou aos
conselhos que o seu amigo monge Joshu Sasaki lhe terá sussurrado ao ouvido
durante a sua estadia no mosteiro, Leonard Cohen desistiu, deixando a esperança
para quem tiver ainda a Força: “For the innermost decision/That we cannot but
obey/For what’s left of our religion/I lift my voice and pray:/May the lights
in the land of plenty/Shine on the truth, some day”. Uma certa forma de “new
age” existencial que cai bem. Se é que é possível cair bem… Talvez seja. No
presente, Leonard Cohen diz: “Estou feliz”.
Danças com abelhas. Será Suzanne Vega capaz de estender a
mão? De conservar e usar a força? De ser feliz? Como Leonard Cohen, seu mestre,
Suzanne (uma das canções do canadiano chama-se assim, “Suzanne”) colocou o ênfase
na palavra “song” no título do seu novo álbum, “Songs in Red and Gray”.
Assunção de um estatuto de cantor-compositor clássico que dispensa associações.
As canções a “vermelho” e “cinzento” – o vermelho do coração, o cinzento do
cérebro – têm uma só assinatura, imediatamente reconhecível: “Canções Suzanne
Vega”. À semelhança de Cohen, há uma voz e um estilo inconfundíveis, quer se
goste ou não deles. E, ainda como Leonard Cohen, Suzanne Vega não resiste a
cantar sobre as suas desventuras amorosas. Com uma diferença: apesar dos santos
e penitentes que assombram “Songs in Red and Gray”, para si, o fim de uma
relação não é o fim do mundo.
Suzanne, 42 anos, revolve com outra força
as feridas de cada um de nós. Menos mito (mesmo a “Virgin Mary” de “It makes me
wonder” é a companheira de “uma exploração carnal” do “sagrado” e do “profano”)
e mais sangue fresco.
Nos 66 anos de Cohen, o sangue corre frio
e devagar. Nela tudo arde ainda. O ardor do ferrão da abelha cravado na carne.
Depois, quer se queira quer não, Suzanne Vega sabe colorir as suas histórias
com um vigor instrumental que Cohen desde sempre dispensou. E pintar-se com as
imagens de uma simbologia da terra: folhas, abelhas, uma rosa-chaga, um baralho
de cartas, aberto em copas – corações. Será uma forma de se cobrir. Cohen vai
nu. Ela dança, como uma bailarina.
“Songs in Red and Gray” é, como não
poderia deixar de ser, um álbum feito à medida de quem sente e sabe cantar com
ternura aquilo que sente. Cohen vai descamando a alma como um réptil. Vega
brilha ainda como uma estrela cujo brilho irradia. Cohen arrefece. Vega aquece.
Mesmo se “Songs in Red and Gray”, balouçando entre a maquinaria de cetim de
“99,9ºF”, orquestrações folky e o arvoredo outonal de segredos ditos, às
escondidas, num sonho, não acrescente uma vírgula à grandeza, sinónimo de
beleza, oferecida em “Days of Open Hand”.
Ainda assim, o mestre deveria aprender
com a discípula. Que é, aliás, o que fazem todos os verdadeiros mestres.
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