05/02/2015

O espírito permanecerá [Mafalda Arnauth]



Y 12|OUTUBRO|2001
escolhas|ao vivo

mafalda arnauth
o espírito permanecerá

Entre o espetáculo de apresentação, apadrinhada por João Braga, e a edição do último, e segundo, álbum, “Esta Voz que me Atravessa”, Mafalda Arnauth evoluiu de intérprete fenomenal de Amália para uma das mais poderosas e emotivas vozes femininas do fado. O espetáculo de amanhã, na Culturgest, às 21h30, será o de mais uma consagração.
Nasceu em Lisboa há 27 anos. Estava longe de pensar que faria do fado profissão. Mas isso foi no início de carreira, quando poucos conheciam o dom da sua voz. Hoje, com dois álbuns editados, o último dos quais considerado um dos grandes discos de música portuguesa deste ano, foi “arrastada” pela mais “estranha forma de vida” que se possa imaginar. Destino inevitável das divas.
Recentemente tornou-se a primeira artista portuguesa a ser representada internacionalmente pela Virgin, com o novo disco a ser editado neste selo na Bélgica, França e Espanha.
Será acompanhada na Culturgest por José Elmiro Nunes (guitarra portuguesa), José António Mendes (viola de fado), Rodrigo Serrão (contrabaixo) e, como convidado em dois temas, João Courinha (saxofone).
O facto de agora fazer parte do catálogo da Virgin é um indício de um reconhecimento internacional?
É uma situação sem precedentes. Além de que ter uma editora a apostar em mim lá fora é diferente do que ter de ir aos vários países apresentar-me a um número restrito de pessoas. É uma conquista fantástica.
Ainda se lembra de quando afirmava que jamais lhe passaria pela cabeça viver do fado?
(risos) Lembro-me! Ainda há dias recebi um telefonema de um colega de curso [Veterinária] a perguntar-me como é que eu ia fazer com os exames! Existe essa pressão, mas o fado é mais forte do que eu…
Ainda seria possível voltar atrás?
Jamais. O fado como “hobby” tornou-se impossível, com a carteira de trabalho que já tenho e que domina a minha vida para os próximos meses. Mas não gosto de pensar no futuro, se vou conseguir cá estar daqui a 50 anos e com tudo a correr sempre bem… É importante viver cada período de cada vez; depois, pelo caminho, acontece sempre qualquer coisa, até precisar de parar um pouco e respirar fundo. Mas o fado tornou-se a minha opção.
Foi graças a si que as portas se abriram a fadistas da sua geração?
O meu disco surgiu há dois anos, quando não havia um único disco de fado das pessoas da minha geração. A Cristina Branco já tinha editado alguns, mas só na Holanda. Agora, apareceu o disco da Kátia Guerreiro; surgirá, esperemos, o da Ana Sofia Varela. Sinto que se sou exemplo de algo, é da necessidade de ter uma identidade. Alguns dos projetos que vão surgindo fogem cada vez mais à cópia. Só pelas fotos do artigo que saiu há algum tempo no Y se percebe que todas as fadistas são diferentes e que todas elas andam à procura dessa identidade, independentemente de ser encontrada um “nova Amália”… Pretendemos fugir a isso. Até por respeito à própria Amália Rodrigues.
O facto de ir atuar com mais frequência no estrangeiro, para pessoas que já conhecem o seu disco, vai alterar a estrutura dos seus espetáculos?
Estou numa fase de fazer cada vez menos concessões. Mesmo em Portugal, a tendência é a de privilegiar a exposição de quem sou e não a de receber muitas palmas. Isto implica que nos espetáculos faça apenas o que me apetece. Se estiver a cantar para um público que prefere marchas, sei que se cantar um espetáculo inteiro de marchas vou sentir que não estou a ser verdadeira.
Os recentes acontecimentos no mundo, depois de 11 de Setembro, refletiram-se na sua maneira de compor, de viver e de cantar?
Uma das primeiras sensações que tive quando estava a olhar para a televisão foi de que estava a viver um filme. Levou tempo até interiorizar o que estava a acontecer. Há um mundo cá fora e um mundo dentro de nós. E dentro de nós haverá provavelmente muitas “twin towers” tão vulneráveis como aquelas. Preciso cada vez mais de paz interior, o que se torna cada vez mais difícil. Tudo o que aconteceu vai ter consequências e não sei se temos consciência disso. Os valores de sobrevivência podem ser postos em causa. As pessoas vão ter que pensar no que é mais importante: se a matéria (estamos cheios de medo que o planeta rebente de uma vez) ou se a própria espiritualidade do mundo, que está de rastos. Violência gera violência.
Como é que encontra essa paz interior?
Passa pela auto-estima e auto-estima não é considerarmo-nos a melhor pessoa do mundo, mas aceitarmo-nos e aos outros. O meu corpo é o lugar onde habita o meu espírito. Se amanhã desaparecer o meu espírito há-de permanecer. A paz vem daí.


MAFALDA ARNAUTH
LISBOA | Auditório da Culturgest
sáb., 13, às 21h30; bilhetes: 3000$00

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