07/11/2015

O rock segundo os homens de negro [The Stranglers]



Y 11|JANEIRO|2002
stranglers|música


Os Stranglers foram uma banda punk.
Os Stranglers nunca foram uma banda punk.
O que significava em 1977 ser punk? A reedição da obra principal do grupo ilude a questão. Os Stranglers eram energia. Pura e escura. Como a aura de maldição que os rodeou.

O rock segundo os homens de negro

Ao contrário da maioria dos punks, os Stranglers sabiam tocar instrumentos, usavam sintetizadores, já não eram nenhuns adolescentes quando começaram (o baterista, Jet Black, já tinha ultrapassado a casa dos 30) e, heresia das heresias, acreditavam que tinham um futuro.
            “IV Rattus Norvegicus”, o álbum da ratazana, lançado em 1977, tornou supérflua a questão da maior ou menor punkitude. Ostentava a elegância da pop, a energia do rock e o kitsch escandaloso de uma sex-shop. Entre os arpejos de órgão a fazer lembrar os Doors de Dave Greenfield, o baixo polposo de Jean-Jacques Burnel, a guitarra cortante de Hugh Cornwell e a batida infatigável do baterista com cara de talhante, Jet Black, “IV Rattus Norvegicus” desbaratou a anarquia introduzida pelos Sex Pistols, à custa de canções compostas com conta peso e medida como “Goodbye Toulouse”, “Hanging around”, “Peaches” e os provocatórios (para a época) sete minutos e picos da “suite(!)” “Down in the sewer”.
            “No More Heroes”, editado no mesmo ano, revelava algumas das dificuldades que em geral andam associadas à tradicional prova de fogo do segundo álbum. Álbum mais duro e linear que o seu antecessor, hesitava entre as descargas proto-industriais de “I feel like a wog” (a eclosão discográfica dos Suicide na cena nova-iorquina e a sua estreia discográfica, no mesmo ano de 1977, terão deixado marcas), o ultra-trauteável título-tema e a longa narrativa “doom” do final, “School mam”. Mantinha porém a tensão e, no ar, a perspetiva de coisas mais fortes ainda por vir. E ainda depunha uma coroa de flores na tumba de Trotsky…
            A força veio logo com “Black and White”, de 1978, um verdadeiro murro nos dentes do punk e a prova de que a energia apregoada pelos homens dos alfinetes era mais do que ruído e volume no máximo. “Black and White” explode literalmente no tema de entrada, “Tank”, introduz a valsa “Nice ‘n’ sleazy”, iniciando uma tradição que se manteria nos álbuns seguintes, e explora sem pruridos a eletrónica (“In the shadows” já não ficava a perder na comparação com os Suicide). Um álbum dominado pelo baixo avassalador de Burnel mas, paradoxalmente, “frio”, da mesma forma que “Low” é “frio” na discografia de David Bowie.
            Porém, o melhor, que é também o mais ameaçador, dos Stranglers surge ao quarto álbum, “The Raven” (1979), inspirado na mitologia viking. O tema da morte e da putrefação, que desde o início estivera presente no grupo, adquire contornos mais precisos. Depois da ratazana, o corvo aparece como símbolo dos predadores necrófagos que eram os Stranglers. “The Raven” mergulha numa pop eletrónica doentia, separada da fação neo-romântica de bandas contemporâneas dos Stranglers como os Visage, Depeche Mode, OMD, Yazoo ou Berlin Blondes.
            “The raven”, “Baroque bordello”, “Nuclear device”, “Duchess” e, sobretudo “Don’t bring Harry” (o “H” de heroína, com um vago cunho de Lou Reed, a primeira de várias baladas açucaradas com veneno dos Stranglers que o grande público acolheu sem reparar na perversidade que lhes estava intrínseca), têm tanto de pouco saudável como de acessibilidade melódica. “Meninblack” introduz a temática que ocuparia a totalidade do álbum seguinte – a invasão alienígena, no caso E.T.s disfarçados de terráqueos, praticantes do canibalismo, tema pelo qual Jean-Jacques Burnel, ideólogo da banda, confessava nutrir especial predileção. O tema é vocalizado pelos próprios E.T.s nas suas vozesinhas de fantoches de dentuça afiada: “We are here to destroy (…) human flesh is porky meat”, a refeição intercalada por gargalhadas arrepiantes.

            maldições. “The Gospel According to the Meninblack”, de 1981, é, na opinião de muitos, incluindo os próprios elementos do grupo, a obra máxima dos Stranglers, mas também a “obra de arte” amaldiçoada desde o início. Criaram-se lendas e factos em seu redor. Fitas que desaparecem misteriosamente, material que explodiu após a visita aos estúdios de um falso técnico, a morte súbita de pelo menos três pessoas ligadas à banda, ameaças de morte aos elementos do grupo, conferiram uma aura demoníaca a um disco que, em termos estritamente musicais, é, sem dúvida, o mais complexo e enigmático dos Stranglers.
            Jean-Jacques Burnel define-o como “à frente do seu tempo” e o “cruzamento de Erik Von Daniken [autor de vários clássicos da literatura de OVNIs na sua variante mais mística] com os Kraftwerk e Giorgio Moroder”. A teoria da conspiração, o Apocalipse, o controle mental dos alienígenas sobre os terráqueos e uma releitura da Bíblia à luz destes monstros que controlariam desde há muito os destinos da Terra, materializam-se em sequências onde estão presentes o erotismo, a peste, o veludo e o poder das máquinas, com prólogo na valsa instrumental “Waltzinblack” (de novo as vozesinhas e as gargalhadas diabólicas…) e epílogo no aterrizador “mid tempo”, entre a marcha de robôs e uma BSO de Morricone, de “Hallow to our men” – a submissão aos novos senhores do planeta.
            Fruto ou não das “más vibrações” acumuladas, o disco seguinte, “La Folie”, é uma espécie de anti-clímax, uma fuga (os Stranglers terão mesmo disso “aconselhados” a abandonar a temática dos “homens de negro”…) ou um exorcismo, da mesma forma que o escritor maldito Isidore Ducasse, sob o pseudónimo literário de Conde de Lautréamont, se sentiu na necessidade de escrever um tratado sobre a virtude a seguir ao manifesto da crueldade e diabolismo de “Os Cantos de Maldoror”…
            Para os fãs dos Stranglers, a vertente dandy, europeísta (que Burnel exploraria em profundidade no seu trabalho a solo, “Euroman Cometh”) e quase etérea de “La Folie”, também de 1981 (um título que diz muito sobre os acontecimentos do antes e depois de “The Meninblack…), foi um choque. Para a posteridade ficaram o poema declamado do título-tema, e “Golden Brown”, outra balada irresistivelmente delicodoce com alusões à heroína, que intoxicou os tops.
            Do presente pacote de reedições – convenientemente remasterizadas e aumentadas com uma quantidade generosa de “bónus tracks” – faz ainda parte “Live (X Cert)”, de 1979, que funde como se fosse um só, dois concertos, realizados respetivamente no “Rainbow Theatre”, em Londres, e no Battersea Park. Este último, descrito como “infame”, foi marcado pela invasão do palco por strippers, homens e mulheres (façam favor de conferir pela foto do livrete…), criando o caos durante a interpretação de “Nice ‘n’ sleazy” (curiosamente deixado de fora do alinhamento). Daí a razão do subtítulo: “Stranglers in Nude Woman Horror Shock”… Apenas mais um pormenor sórdido entre os muitos que marcaram a carreira daquela que foi uma das bandas mais provocatórias do rock.


THE STRANGLERS
IV Rattus Norvegicus
7|10
No More Heroes
6|10
Black and White
8|10
The Raven
8|10
Live (X Cert)
6|10
The Gospel According to the Meninblack
8|10
La Folie
6|10
EMI, distri. EMI-VC

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