cultura SEGUNDA-FEIRA,
13 MARÇO 2000
Tony
Conrad espanta e convence no Museu de Serralves, no Porto
Acordar com o buzinão
Ocultos por
uma cortina, como dois fantasmas, Tony Conrad e Alexandria Gelencser refutaram
todas as noções tidas por seguras sobre a música e a sua interpretação. Não foi
a música das esferas, mas o magma anterior à criação que revelaram ao público
do Porto. O som em estado bruto.
Um buzinão em estereofonia. Foi assim que soou a música do
norte-americano Tony Conrad, na sua primeira e única apresentação em Portugal,
sábado, no Museu de Serralves, no Porto, no âmbito do ciclo On/Off, paralelo à
exposição "Andy Warhol – A Factory". Um buzinão produzido em
simultâneo por um parque automóvel inteiro e uma frota de navios.
Durante cerca de
uma hora e um quarto, Tony Conrad e a sua companheira Alexandria Gelencser
"executaram", respetivamente no violino e no violoncelo, uma
"drone" ininterrupta em que todas as noções convencionais de
"composição" e "interpretação" se diluíram no
"continuum" sonoro.
Nem Tony Conrad,
nem a sua companheira são intérpretes no sentido tradicional do termo. Nem
sequer artistas com uma presença convencional em palco. Atuaram todo o
"concerto" ocultos por uma cortina onde eram projetadas as suas
silhuetas, como sombras chinesas. Ela sempre imóvel, ele num estranho bailado
com o violino, e com um chapéu estilo Freddy Kruger.
Utilizaram-se
ambos dos respetivos instrumentos para instalarem na sala um som sem princípio
nem fim, neste ponto de acordo com os princípios enunciados pelo guru La Monte
Young, a quem Conrad esteve umbilicalmente ligado e cujas teorias procurou
refutar. Alexandria tocou sem uma pausa sistematicamente a mesma nota, mais ou
menos amplificada (aliás, foi essa capacidade em se manter fiel a uma única
nota que terá seduzido Conrad em primeiro lugar e o terá levado a convidar para
o palco a "violoncelista"...). Sobre esta nota, Tony Conrad
acrescentou um molho de outras, arranhadas, arrancadas em postas de sangue ao
violino. As únicas alterações sensíveis eram provocadas pelo aumento ou
diminuição do volume e da carga de distorção provocada por meios eletrónicos. E
assim, durante um período de tempo impossível de ser medido segundo os
parâmetros normais, todos – músicos e público – aguentaram com estoicismo este
"happening" descolado da fonte primordial do som.
Diga-se que,
embora radical pelo lado da insistência numa única tónica, por vezes no limite
do suportável, esta música encontra parentesco estético em músicos como
Charlemagne Palestine, Steve Reich (nas primeiras obras, como "Four
Organs" ou "Phase Patterns", embora num quadro de sistematização
que Conrad em absoluto dispensa) e o próprio La Monte Young. Uma música que,
partindo de uma síncrese inicial, pretende, pela libertação sistemática de harmónicos,
induzir o ouvinte num segundo nível, superior, de audição, levando-o a ouvir
uma espécie de "música secreta" formatada pelo seu próprio
subconsciente. Exemplo magnífico: há anos, na Gulbenkian, Steve Reich criou um
nirvana virtual sustentado unicamente pelos harmónicos de seis pianos
verticais.
Mas Conrad não é
Reich. Para que este salto qualitativo aconteça é necessário, quer se queira
quer não, virtuosismo da execução. E foi por aqui, e só por aqui, que o
"concerto" de Conrad e da sua companheira revelou a sua dissidência.
Não aconteceu uma segunda música, sobreposta à da superfície, porque tanto o
violino como o violoncelo nunca vibraram em sintonia com a música das esferas
que os minimalistas almejavam. Como um Boeing que em vez de asas tivesse
lagartas. Em lugar de harmónicos em suspensão, ouviu-se um ranger de dentes, um
som que, insistentemente, rasou o chão. Mas essa é, afinal, a intenção de Tony
Conrad – a desmistificação do minimalismo, amarrando o auditor à estaca zero da
música. Desta opção poderá resultar outra espécie de transe, um estado de
entorpecimento provocado pela monotonia e pela opacidade do som. Mas fosse qual
fosse o modo como cada um, no auditório do Museu Serralves, interiorizou esta
recusa sistemática do politicamente correto, a verdade é que a resposta final
foi um prolongado aplauso de que o próprio Conrad, provavelmente, não estaria à
espera. Só no final, ele e Alexandria se mostraram fisicamente ao público, para
agradecer. Um homem gorducho com ar de avô bonacheirão e uma quase criança de
olhar assustado. Sós, sem qualquer proteção, expostos perante uma hipotética e
afinal não confirmada agressividade ou indiferença do público, conseguiram o
prodígio de dar a ouvir o fluxo do som anterior a toda a música e mostrar o gesto
que antecede a sua interpretação. O buzinão teve, afinal, o condão de nos
acordar.
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