DESTAQUE
CANÇÕES
DE AIME MANN SUSTENTAM FILME DE ANDERSON
O DIA DO JUÍZO FINAL
"MAGNÓLIA"
É UM DOS MAIS BELOS FILMES ALGUMA VEZ FEITOS SOBRE A CONDIÇÃO HUMANA.
CONSTRUÍDO COMO UMA SINFONIA A PARTIR DE PEDAÇOS DE SENTIMENTOS ARRANCADOS A
CANÇÕES POP, O FILME DE PAUL THOMAS ANDERSON HARMONIZA OS ANDAMENTOS DO DESTINO
E O AJUSTE DE CONTAS DE CADA UM CONSIGO PRÓPRIO, COM OS OUTROS E COM DEUS.
"MAGNÓLIA" É – seja qual for o prisma por que se analise
– uma obra-prima. E, como todas as obras-primas, é uma obra total,
avassaladora, capaz de despoletar as emoções mais escondidas e de oferecer ao
cérebro material suficiente para uma tese de doutoramento.
Quando do
visionamento, já lá vão quase duas semanas, desta terceira longa-metragem de
Paul Thomas Anderson, saí da sala arrasado. Despedaçado. Com a impressão de ter
assistido a algo excessivo, de que o realizador terá ido longe demais, entrando
em regiões proibidas do cinema e de nós próprios, habitualmente seladas.
Mas o milagre – e
este é um filme assaltado por milagres na dialética que se estabelece entre a
visão dos homens e a visão de Deus – impregna toda a estrutura cinematográfica
de "Magnólia", com as soluções, formais e de argumento, que Paul Thomas
Anderson faz saltar da cartola, levando-nos do espanto ao deslumbramento, numa
sucessão de momentos/movimentos que fazem subir os níveis de tensão até esta se
tornar quase insustentável.
Mas no instante
exato em que tudo parece comprimir-se contra a última e mais espessa das
barreiras e ao mesmo tempo ser sugado pelo vértice da morte (que é, de resto, a
principal personagem de "Magnólia", quer na insistência com que a
doença, o cancro, nos é apresentada como instrumento do juízo final, quer no
disfarce com que em geral ela se apresenta aos olhos dos homens e ao qual
chamamos "vida") eis que um raio de luz – ou uma canção – irrompem a
pôr ordem no jogo.
Encarado numa
perspetiva formal, e considerando a sua génese, "Magnólia" é uma
sinfonia. Sabe-se que o realizador partiu para a feitura deste filme
inspirando-se nas canções da cantora Aimee Mann, até à data, com os álbuns
"I'm with Stupid" e "Whatever", uma intérprete de doçuras
pop, mas que agora, revista à luz do filme, escutamos com a suspeição de que um
qualquer pormenor perverso nos terá escapado... Aproveitamento que chega a ser
literal no modo como a letra de uma das canções da banda sonora é integralmente
convertida num dos diálogos entre o polícia e executor da vontade divina, Jim
Kurring (John C. Reilly), e a desesperada Rose (Julianne Moore).
Não deixa de ser
curioso, neste aspeto, que da música com óbvios contornos pop como é a de Aimee
Mann, tenha Paul Thomas Anderson erguido uma arquitetura sinfónica. É óbvia a
construção em diversos andamentos de "Magnólia" e a ênfase posta na
harmonia que, em música, se define como a "arte e doutrina da formação e
encadeamento dos acordes", na articulação total das melodias, sobrepostas
ou paralelas, e no contraponto, "a arte de escrever música em duas ou mais
partes". E se o contraponto trata da "simultaneidade horizontal das
melodias" já a harmonia dispõe "a sucessão vertical dos
acordes", sendo ambos indestrinçáveis na arquitetura global da obra
musical.
Harmonia e
contraponto são dois dos elementos musicais que na economia do filme funcionam
através da combinação em puzzle entre as várias histórias, "as melodias
horizontais", que se vão desenrolando em simultâneo e nos vários
movimentos psicológicos/emocionais, "verticais", das diversas
personagens, cada uma delas funcionando no seu acorde particular e de acordo
com a sua própria melodia.
Modulações
sobre o destino
Se quiséssemos
dar nome a esta soberba peça sinfónica com cerca de três horas de duração chamar-lhe-íamos
"O Dia do Juízo Final", "O Dilúvio" ou, num registo mais
contrapontístico, "Modulações sobre o Destino".
Logo no prelúdio,
na apresentação de três pequenas histórias – verídicas? – que descrevem com
minúcia dolorosa uma sucessão de "coincidências" impossíveis
("Tem que haver uma explicação, uma resposta, para isto, para estas coisas
acontecerem", questiona a voz em "off" do narrador que depois se
descobre ser a do polícia Jim Kurring), o realizador lança a chave que permite
acompanhar a corrente subterrânea subjacente na lógica na mecânica de funcionamento
de "Magnólia": cada ação humana é dirigida e condicionada por um
conjunto de circunstâncias que, contra todas as aparências, nunca são
arbitrárias.
A cada mulher e a
cada homem, a cada personagem de "Magnólia", é impossível escapar a
este determinismo. Senão vejamos, cada instante da nossa viva, para além das
circunstâncias exteriores, é a súmula total da nossa vida passada, das leis
impressas nos genes e do filme interior e pessoal do momento que condicionam a
ação. Impossível o mínimo gesto arbitrário. É assim porque tem que ser assim.
Só no final da
vida, no último flashback – e em "Magnólia", de uma maneira ou de
outra, todos se encontram perto do final ou em rituais de passagem das suas
vidas, física, psicológica e emocionalmente à beira do abismo, dos que estão
prestes a sucumbir à doença, como Earl (Jason Robards) e Gator (Jimmy Baker
Hall), a Stanley (Jeremy Blackman), o menino-sábio para quem o universo se
desmorona só porque não o deixaram sair para urinar – é possível compreender o
sentido geral de tantas "coincidências" acumuladas, as faltas e as
perdas, as culpas e os fracassos. O sentido da vida que, quer se queira quer
não, como um túnel, todos temos que percorrer.
Mas existe um
lugar onde a liberdade e o poder de decisão existem e esse é o domínio da
interioridade e da imaginação. "Magnólia" fala afinal da tragédia
inerente à condição humana que é esta contradição entre a vida que imaginamos
por dentro e a vida que somos forçados a viver por fora, dominados pelas
pulsões do corpo, as ilusões da personalidade e os condicionamentos impostos
pelo sistema social. Se é possível escapar às malhas do destino? Se é possível
a redenção? O encontro final de Rose e Jim, cada um a seu modo, dois
sonhadores, dá a resposta.
ARTES
sexta-feira,
21 abril 2000
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