23/02/2017

O dia do juízo final [Magnólia]

DESTAQUE

CANÇÕES DE AIME MANN SUSTENTAM FILME DE ANDERSON

O DIA DO JUÍZO FINAL

"MAGNÓLIA" É UM DOS MAIS BELOS FILMES ALGUMA VEZ FEITOS SOBRE A CONDIÇÃO HUMANA. CONSTRUÍDO COMO UMA SINFONIA A PARTIR DE PEDAÇOS DE SENTIMENTOS ARRANCADOS A CANÇÕES POP, O FILME DE PAUL THOMAS ANDERSON HARMONIZA OS ANDAMENTOS DO DESTINO E O AJUSTE DE CONTAS DE CADA UM CONSIGO PRÓPRIO, COM OS OUTROS E COM DEUS.

"MAGNÓLIA" É – seja qual for o prisma por que se analise – uma obra-prima. E, como todas as obras-primas, é uma obra total, avassaladora, capaz de despoletar as emoções mais escondidas e de oferecer ao cérebro material suficiente para uma tese de doutoramento.
            Quando do visionamento, já lá vão quase duas semanas, desta terceira longa-metragem de Paul Thomas Anderson, saí da sala arrasado. Despedaçado. Com a impressão de ter assistido a algo excessivo, de que o realizador terá ido longe demais, entrando em regiões proibidas do cinema e de nós próprios, habitualmente seladas.
            Mas o milagre – e este é um filme assaltado por milagres na dialética que se estabelece entre a visão dos homens e a visão de Deus – impregna toda a estrutura cinematográfica de "Magnólia", com as soluções, formais e de argumento, que Paul Thomas Anderson faz saltar da cartola, levando-nos do espanto ao deslumbramento, numa sucessão de momentos/movimentos que fazem subir os níveis de tensão até esta se tornar quase insustentável.
            Mas no instante exato em que tudo parece comprimir-se contra a última e mais espessa das barreiras e ao mesmo tempo ser sugado pelo vértice da morte (que é, de resto, a principal personagem de "Magnólia", quer na insistência com que a doença, o cancro, nos é apresentada como instrumento do juízo final, quer no disfarce com que em geral ela se apresenta aos olhos dos homens e ao qual chamamos "vida") eis que um raio de luz – ou uma canção – irrompem a pôr ordem no jogo.
            Encarado numa perspetiva formal, e considerando a sua génese, "Magnólia" é uma sinfonia. Sabe-se que o realizador partiu para a feitura deste filme inspirando-se nas canções da cantora Aimee Mann, até à data, com os álbuns "I'm with Stupid" e "Whatever", uma intérprete de doçuras pop, mas que agora, revista à luz do filme, escutamos com a suspeição de que um qualquer pormenor perverso nos terá escapado... Aproveitamento que chega a ser literal no modo como a letra de uma das canções da banda sonora é integralmente convertida num dos diálogos entre o polícia e executor da vontade divina, Jim Kurring (John C. Reilly), e a desesperada Rose (Julianne Moore).
            Não deixa de ser curioso, neste aspeto, que da música com óbvios contornos pop como é a de Aimee Mann, tenha Paul Thomas Anderson erguido uma arquitetura sinfónica. É óbvia a construção em diversos andamentos de "Magnólia" e a ênfase posta na harmonia que, em música, se define como a "arte e doutrina da formação e encadeamento dos acordes", na articulação total das melodias, sobrepostas ou paralelas, e no contraponto, "a arte de escrever música em duas ou mais partes". E se o contraponto trata da "simultaneidade horizontal das melodias" já a harmonia dispõe "a sucessão vertical dos acordes", sendo ambos indestrinçáveis na arquitetura global da obra musical.
            Harmonia e contraponto são dois dos elementos musicais que na economia do filme funcionam através da combinação em puzzle entre as várias histórias, "as melodias horizontais", que se vão desenrolando em simultâneo e nos vários movimentos psicológicos/emocionais, "verticais", das diversas personagens, cada uma delas funcionando no seu acorde particular e de acordo com a sua própria melodia.

Modulações sobre o destino

            Se quiséssemos dar nome a esta soberba peça sinfónica com cerca de três horas de duração chamar-lhe-íamos "O Dia do Juízo Final", "O Dilúvio" ou, num registo mais contrapontístico, "Modulações sobre o Destino".
            Logo no prelúdio, na apresentação de três pequenas histórias – verídicas? – que descrevem com minúcia dolorosa uma sucessão de "coincidências" impossíveis ("Tem que haver uma explicação, uma resposta, para isto, para estas coisas acontecerem", questiona a voz em "off" do narrador que depois se descobre ser a do polícia Jim Kurring), o realizador lança a chave que permite acompanhar a corrente subterrânea subjacente na lógica na mecânica de funcionamento de "Magnólia": cada ação humana é dirigida e condicionada por um conjunto de circunstâncias que, contra todas as aparências, nunca são arbitrárias.
            A cada mulher e a cada homem, a cada personagem de "Magnólia", é impossível escapar a este determinismo. Senão vejamos, cada instante da nossa viva, para além das circunstâncias exteriores, é a súmula total da nossa vida passada, das leis impressas nos genes e do filme interior e pessoal do momento que condicionam a ação. Impossível o mínimo gesto arbitrário. É assim porque tem que ser assim.
            Só no final da vida, no último flashback – e em "Magnólia", de uma maneira ou de outra, todos se encontram perto do final ou em rituais de passagem das suas vidas, física, psicológica e emocionalmente à beira do abismo, dos que estão prestes a sucumbir à doença, como Earl (Jason Robards) e Gator (Jimmy Baker Hall), a Stanley (Jeremy Blackman), o menino-sábio para quem o universo se desmorona só porque não o deixaram sair para urinar – é possível compreender o sentido geral de tantas "coincidências" acumuladas, as faltas e as perdas, as culpas e os fracassos. O sentido da vida que, quer se queira quer não, como um túnel, todos temos que percorrer.
            Mas existe um lugar onde a liberdade e o poder de decisão existem e esse é o domínio da interioridade e da imaginação. "Magnólia" fala afinal da tragédia inerente à condição humana que é esta contradição entre a vida que imaginamos por dentro e a vida que somos forçados a viver por fora, dominados pelas pulsões do corpo, as ilusões da personalidade e os condicionamentos impostos pelo sistema social. Se é possível escapar às malhas do destino? Se é possível a redenção? O encontro final de Rose e Jim, cada um a seu modo, dois sonhadores, dá a resposta.

ARTES

sexta-feira, 21 abril 2000

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