DOMINGO, 2 ABRIL 2000 cultura
Festival Intercéltico do Porto
Força,
companheiro basco!
Kepa Junkera
arrasou o Coliseu do Porto, como era de esperar. Mas foram os Shantalla, na
sala do Café-Concerto, que mantiveram aceso o espírito do festival, com a sua
genuína música irlandesa e uma vocalista que veio dançar para o meio do
público. Atuação desastrosa dos Ceolbeg.
Com o
Intercéltico do Porto, abriu a época de festivais de folk e world music em
Portugal. Outros se seguirão até ao final do Verão. O Cantigas do Maio, do
Seixal, o Multimúsicas, em Lisboa, os Encontros Musicais da Tradição Europeia,
em várias cidades do país, o Ritmos do Mundo, no Porto, o estreante e novo
Intercéltico de Sendim, em Trás-os-Montes, o Festnia, também em Lisboa, sem
falar nos concertos avulsos do Sete Sóis Sete Luas.
Ao longo das suas
onze edições o Intercéltico conquistou um lugar ao sol, tornando-se o mais
mediático de todos eles. Ganhou um público fiel, impôs um estilo mas, em fase
de crescimento, sente-se a necessidade de colocar a si próprio novos desafios
que lhe permitam renovar-se e, porque não, arriscar novas vias de
desenvolvimento que o arranquem de uma via mainstream que nos últimos anos se
consolidou.
Começou mal a
edição deste ano, mas terminou em beleza. Kepa Junkera fez o que quis de um
público que reagiu entre alguma confusão provocado pelas constantes fintas do
basco, a dança e a rendição final. Antes, os Ceolbeg não estiveram à altura dos
seus pergaminhos. Já noite adiantada, diante de uma plateia faladora, os
Shantalla trouxeram a centelha de espontaneidade para o Intercéltico, na sala
de café-concerto instalado no Coliseu. Foi aí que a festa verdadeiramente
aconteceu.
Mas recuemos
algumas horas e desçamos dois pisos do Coliseu até chegarmos ao recinto
principal. Sala cheia, muito público a chegar atrasado, incomodando quem já
ouvia os Ceolbeg. Ambiente esfuziante. Coube aos escoceses Ceolbeg, com um novo
álbum, "Cairna Water", debaixo do braço, abrir o festival.
Esforçaram-se mas o falhanço foi quase total. Mastodônticos, absolutamente
incapazes de saltar com agilidade de um compasso para outro, chegou a ser
confrangedor assistir aos momentos de puro desnorte quando tentavam fazer uma
transição mais difícil no enquadramento de um "set" instrumental.
Neste capítulo, Mike Travis, o baterista, esteve desastrado, falhando entradas
e mostrando-se um percussionista medíocre. Gary West esforçou-se como pôde nas "Highland
pipes", com os resultados a oscilarem entre algum atabalhoamento nos temas
mais recentes e a competência nos temas mais antigos. Mesmo assim, não
deslumbrou o seu desempenho num dos temas emblemáticos da banda, a belíssima
"lullaby" que fecha o álbum "Seeds to the Wind". Salvou-se,
no meio de tanto desacerto, a notável harpista Wendy Stewart, uma constelação
de outra galáxia que brilhou mais do que todos os outros. Uma atuação do grupo
para esquecer que culminou numa descabida e insonsa interpretação de "To
each and everyone", uma das mais belas canções de Gerry Rafferty, do álbum
"Can I Have my Money back?".
O génio de
Kepa
Depois dos
Ceolbeg qualquer grupo triunfaria. Mas Kepa Junkera - o mago da
"trikitixa" - fez questão de não facilitar. Com base no seu reportório
habitual, composto por temas de álbuns como "Lau Eskutara" (com Júlio
Pereira) mas, sobretudo, do mais recente "Bilbao 00.00H", Kepa partiu
para um "show" pessoal onde o seu reconhecido virtuosismo (algumas
vezes no limite do exibicionismo...) não obstou a que, uma vez mais, pusesse
claro o seu génio inventivo.
Não chega a Kepa
Junkera fazer o que se dele se espera. Há que surpreender e criar a todo o
momento. E o basco cumpriu estes desígnios: pôs o público a cantar uma nota
vibrante que serviu de fundo a um dos temas mas também lhe trocou as voltas,
impondo silêncios, parando de súbito a meio de um solo endiabrado, escavacando
compassos, correndo a convocar memórias (jazz, Piazzola, baile musette) para
logo a seguir mandar no baile. A princípio confundido, o público rendeu-se. E
aceitou, mesmo quando, já no encore, Kepa e o seu grupo inventaram uma
deliciosa (falsa) cacofonia em equilíbrio entre o atonalismo e a diferente
respiração da "trikitixa" tocada com as duas mãos no mesmo lado do
instrumento. Houve quem dançasse sem parar, e atravessasse a correr o Coliseu
de ponta a ponta. Houve quem não quisesse acreditar nas proezas técnicas do
acordeonista. Mas todos se levantaram no final para uma estrondosa ovação.
Júbilo a compensar uma noite que começou mal.
Findas as
celebrações oficiais, ainda havia mais música à espera noutro local do Coliseu,
no salão Ático. Quem se dispôs, já numa hora bastante adiantada da noite, a ver
como soavam os Shantalla, saiu recompensado. Foi aí, no meio do fumo dos cigarros
e de algum falatório, que a música tradicional mostrou o seu rosto mais limpo e
verdadeiro. Sem peneiras, perante um público já a revelar alguns sinais de
cansaço, os Shantalla respeitaram o velho espírito do pub, com uma nobreza que
bem os poderia ter posto a tocar na sala principal. Herdeiros dos The Bothy
Band e dos Planxty, os Shantalla trouxeram consigo a frescura que às vezes
falta em festivais de grande envergadura como o Intercéltico. Jigs e reels
executados com a fluência de quem respira esta música desde que nasceu, uma
sequência de polkas (uma delas assinada por Donnal Lunny, ex-Bothy band e
Planxty, precisamente...) de compasso intrincado e as vocalizações (num registo
curiosamente inglesado, às vezes a fazer lembrar a June Tabor dos tempos de
"Ashes and Diamonds"...) de Helen Flaherty entraram para a pequena
grande história das memórias mais secretas do Intercéltico. Helen Flaherty que,
entusiasmada com o jeito e a adesão de um grupo de dançarinos portugueses,
saltou para a pista, dançando de braço dado com eles, um largo sorriso a
iluminar-lhe o rosto de alegria. Momentos destes não se esquecem tão cedo e
valem por todo um festival.
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