cultura SEXTA-FEIRA, 28 ABRIL 2000
Argentina
Santos homenageada hoje à noite no Coliseu dos Recreios, em Lisboa
“Fugiu-me para o fado”
Podia ter feito carreira no fado. Preferiu permanecer
fiel à sua Parreirinha de Alfama, onde cozinha e canta há mais de 50 anos. Voz
e presença únicas do fado, Argentina Santos vai, finalmente, ter a sua
consagração num grande espetáculo em Lisboa com a presença outros grandes
fadistas. Vão lá estar todos os seus amigos. E afinal, como ela diz, "mais
vale ter-se amigos do que dinheiro".
Fado é destino. O
de Argentina Santos tem corrido quase sempre na sombra. Espetáculos esporádicos
no estrangeiro, como no Festival de Edimburgo, há três anos, constituem exceção
numa carreira que não o chegou a ser, se a compararmos, por exemplo, com as das
suas contemporâneas Amália Rodrigues e Hermínia Silva. É hoje à noite
homenageada no Coliseu, em Lisboa.
A Parreirinha de Alfama, restaurante
e casa de fados, tem sido desde há muito a sua casa. É aí que, todas as noites,
dirige as operações na cozinha, onde confecciona um arroz de tamboril do qual
só ela detém o segredo. É aí também, sempre que estão presentes "pessoas
que gostam realmente de fado", que canta como só ela o sabe fazer. Sem
concessões de qualquer espécie. "Não sei cantar a 'Casa portuguesa', não
sei cantar os 'Caracolitos', o 'Cheira a Lisboa', essas coisas... Uma vez
tentei cantar 'Uma casa portuguesa' e fugiu-me para um fado...". Fadista
de corpo inteiro, Argentina Santos, nessas ocasiões espera "que os
turistas saiam", para começar a cantar.
O grande público ficou a conhecê-la
um pouco melhor, graças à sua participação, como convidada, no espetáculo de
Carlos do Carmo, realizado em 1994 no Centro Cultural de Belém.
Carlos do Carmo que esta noite, no
Coliseu dos Recreios, em Lisboa, será, por sua vez, um dos convidados na festa
de homenagem à fadista sobre a qual o escritor Baptista-Bastos, no seu livro
"Fado Falado", escreveu: "Tive, como diria o Eugénio de Andrade,
um alumbramento com aquela mulher. Uma mulher absolutamente espantosa, em cuja
cara se pode ler a geografia da cidade de Lisboa. Argentina Santos é um bairro,
no que um bairro tem de mais específico e de mais resistente à aculturação. É
também uma grande mulher do jazz, a voz humana em pleno voo". E é no
silêncio que Argentina Santos melhor voa: "Não é improvisar, há é uns
sítios em que é bonito fazer umas paragens".
Argentina Santos está nervosa,
perante a perspetiva de um momento que lhe vai ser absolutamente dedicado.
"Estou quase doente", diz, reconhecendo a importância do
acontecimento. Depois o nervoso passa. "Quando começo a cantar".
"Fado menor" vai abrir o
espetáculo, "uma coisa que já canto há muito tempo, o rei dos fados".
Uma letra de Linhares Barbosa com música de Fontes Rocha e "Lágrima"
são outros dos fados que Argentina Santos irá cantar no Coliseu, terminando com
"Lisboa, casta princesa". "Sou alfacinha, gosto de cantar a
minha Lisboa". Um final alegre, "para as pessoas saírem
animadas" que contrasta com o outro fado, melancólico, que é o que
Argentina Santos mais gosta de cantar. "São os que mais sinto. Os que
falam da minha vida, de mim própria, onde cada frase, cada palavra, me fazem
sentir coisas minhas".
“Nunca tive muitos estímulos”
Além do autor de "Um Homem na
Cidade" participam no espetáculo, Maria da Fé, Mafalda Arnauth, Camané,
Jorge Fernando, Rodrigo e Carlos Macedo.
Argentina Santos nasceu no bairro da
Mouraria há 75 anos mas foi em Alfama que se estabeleceu desde os onze. E foi
em Alfama, no Parreirinha, que cantou o fado pela primeira vez, em público.
Quadras soltas, à desgarrada, do fado "Mouraria". Nunca mais se
separou desta casa que desde então se tornou o seu segundo lar e local de
romaria para quem gosta de complementar a espiritualidade do fado com os
prazeres da boa mesa. Nunca quis, ou nunca teve oportunidade, de viver o fado
de outra maneira.
"Sabe, casei-me, o meu marido
não era muito dessas coisas. E à parte isso as pessoas também se esqueceram de
que eu existia. Foi só depois do Carlos do Carmo me ter chamado para o espetáculo
dele que as pessoas começaram a dizer que sabiam que eu existia, que cantava...
A verdade é que nunca tive muitos estímulos. Sou muito estimada pelos meus
clientes e pelos meus amigos, mas quanto ao resto... Sabe, fui uma criança sem
mimos, criada quase sozinha, tudo isso me vem à memória e agora sinto-me muito
comovida, ao fim destes anos todos, mas mais vale tarde do que nunca, como
costumo dizer. E ter-se amigos é melhor do que ter-se dinheiro".
Terá sido a luz de Amália que tudo
ofuscou à sua volta? Para Argentina Santos não terá sido a excelência da diva –
"uma pérola que caiu do céu, uma voz divina como não aparece outra" –
que fez esquecer as restantes vozes do fado que com ela coabitaram, mas
"as pessoas que, realmente, entendiam que só deviam falar dela".
"Mas havia mais gente a cantar bem nesse tempo", recorda a fadista
para quem as vozes de Hermínia Silva, Maria José da Guia, Fernanda Maria e
Anita Guerreiro eram as suas preferidas.
Só esporadicamente o público teve
oportunidade de ver e ouvir Argentina Santos cantar fora do templo. Em 1996,
nas Festas de Lisboa, integrada no "elenco de ouro" (ao lado de
Beatriz da Conceição, António Pinto Basto, Rodrigo e Carlos do Carmo) que em
Junho atuou em vários locais da capital. No ano seguinte, no Teatro Nacional de
S. João, do Porto, no espetáculo cénico-musical "Raízes Rurais – Paixões
Urbanas", dirigido por Ricardo Pais. De novo nas Festas de Lisboa, nesse
mesmo ano, desta feita ao lado de António Pinto Basto, Maria Armanda, Rodrigo e
Vicente da Câmara. E em 1998, no tal espetáculo de Carlos do Carmo, no CCB, que
catapultou o seu nome para as primeiras páginas dos jornais, colocando-o
finalmente na lista dos mais importantes de sempre do fado.
Em disco, Argentina Santos pode ser
ouvida no CD "Meus Fados" ou na coletânea "Fados do Fado".
Hoje à noite será a mais do que merecida consagração desta fadista que, ainda
nas palavras de Baptista-Bastos, "canta como se estivesse a orar a um Deus
desconhecido".
HOMENAGEM A ARGENTINA SANTOS
ARGENTINA
SANTOS, COM MARIA DA FÉ, MAFALDA ARNAUTH, CARLOS DO CARMO, CAMANÉ, JORGE
FERNANDO, RODRIGO E CARLOS MACEDO
Lisboa, Coliseu dos Recreios, às 22h.
Bilhetes entre 3000$ e 4500$
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