cultura QUARTA-FEIRA,
7 JUNHO 2000
Trio polaco
assina atuação impressionante no Cantigas do Maio
Mistério
de Cracóvia no festival do Seixal
Música sobrenatural no Cantigas do Maio. Os polacos Kroke
impregnaram a Fábrica Mundet com o aroma do sagrado. A tradição klezmer sem
tempo nem fronteiras numa experiência que rondou a transcendência. Desiludiram
os Verd e Blu. O festival fechou com rituais africanos da África do Sul e
Moçambique.
São apenas três os
músicos que constituem os Kroke, em homenagem à cidade polaca de Cracóvia que
antes da 2ª Grande Guerra alojava 64 mil judeus e hoje apenas conta umas
escassas centenas. Chamam-se Tomasz Kukurba, no violino, Jerzy Bawol, no
acordeão, e Tomasz Lato, no acordeão. Steven Spielberg "descobriu-os"
há sete anos quando os viu atuar, nessa mesma Carcóvia, na época em que
procedia às filmagens de "A Lista de Schindler". O Seixal ficou
deslumbrado com os Kroke na noite de sexta-feira. Uma atuação que deixou
marcas.
A noite começou, porém, com alguma
desilusão causada pela atuação, aquém das expetativas criadas pelos discos, dos
gascões Verd e Blu. Trajando de forma talvez demasiado informal (leia-se
"abandalhada") para uma apresentação em público, para mais num
festival com a importância do Cantigas do Maio, de bermudas, t-shirts de alças
e chinelos, davam a imagem de um grupo de turistas recém-chegados de uma tarde
de praia na Caparica. Não seria grave se a prestação musical não se tivesse
pautado, como se pautou, pela mesma nota de amadorismo. Os Verd e Blu trataram
a belíssima música da Gasconha ("a mais bela do Cosmos", como
insistentemente referiu o vocalista e acordeonista Joan-Francés Tisnèr) com uma
displicência que não se pode confundir com humor.
As piadas constantes não disfarçaram
a falta de rodagem, as hesitações e as quebras. É verdade que a beleza das
polifonias e das melodias instrumentais da música da Gasconha são suficientes
para impressionar qualquer público mas fez pena assistir ao modo como os Verd e
Blu quase a delapidaram.
A festa não dispensa o rigor e bem
faria o grupo em meditar sobre a diferença entre informalidade e descuido.
Os Kroke atuaram a seguir. E fez-se
luz. Seguindo de perto o alinhamento do novo álbum "The Sounds of the Vanishing
World", o trio polaco atuou em crescendo, impondo impercetivelmente um
clima de espiritualidade e mistério.
Ao contrário dos Verd e Blu,
surgiram trajados a rigor, a preto e branco, todos de chapéu, com o violinista
Tomasz Kukurba, no centro do palco, a impor a imagem de um Freddy Kruger
redimido pela sacralidade dos sons. Ele é, de resto, a alma e o ponto focal dos
Kroke. A uma técnica irrepreensível alia uma intensidade e uma capacidade de
interiorização que ficaram bem patentes no Seixal. A força da música dos Kroke
passa em grande parte por esta concentração absoluta de Tomasz Kukurba, pela
forma como todas as notas nele se aprumam num eixo apontado para as estrelas.
Percussão contrabaixo
A meio da atuação já o concerto se
transformara num ritual. Kukurba acrescentou ao som amplificado do seu violino,
o assobio e a voz, num complemento tímbrico justaposto ao do instrumento. De
notar que certas acelerações do violino deveram muito do seu impacto ao
fraseado, absolutamente espantoso, do acordeonista Jerzy Bawol, este sim, com
uma condução em alta velocidade. Tomasz "aproveitou" esta estrutura
milimétrica para colocar, como se costuma dizer, a cereja no cimo do bolo,
desenhando ornamentações e uma espacialidade que definem a música do grupo.
Já perto do final, num dos muitos
momentos exaltantes da atuação dos Kroke, Kukurba fez um solo de percussão no
tampo do contrabaixo, ao mesmo tempo que Tomasz Lato solava nas cordas. A
música klezmer (música judaica tradicional instrumental da Europa do Leste)
cortava as amarras do tempo e da história, projetando-se na contemporaneidade e
na experimentação. Quando, por fim, os três músicos abandonaram o palco da
Mundet, já o espírito dos assistentes planava sobre o Seixal.
Terra, cores quentes, tambores,
danças guerreiras. A noite de encerramento do Cantigas do Maio decorreu num
registo diametralmente oposto ao da véspera, com a África a ocupar em toda a
linha o festival. Primeiro com as polifonias zulus dos ex-mineiros Colenso
Abafana Benkokhelo, da África do Sul, a seguir com a orquestra de timbilas e
dançarinos de Venâncio M'bande, de Moçambique.
Recorreram ambas as formações a
coreografias tradicionais ligadas aos usos e costumes das respectivas regiões
de origem. Os Colenso mostraram semelhanças com os mais mediáticos Ladysmith
Black Mambazo, enquanto os moçambicanos criaram um padrão infantigável de
micropolirritmias nas timbilas (família dos xilofones) que permitiu compreender
uma das fontes onde foi beber o minimalista Steve Reich... E ou se mergulha
nesta música de corpo e alma e se viaja até ao coração da África profunda até
se alcançar o transe ou se fica de fora a assistir e então, rapidamente, o
fastio se instala. Houve na assistência quem reagisse das duas maneiras. Nós
aventurámo-nos na selva e elegemos esta atuação uma das melhores do festival.
Uma palavra final para os Folia, da
Galiza, que, nestas duas últimas noites, a seguir aos concertos principais,
souberam criar o melhor ambiente na tenda de convívio, e para a organização, a
Associação José Afonso, que, em conjunto com a Câmara do Seixal, contribuíram,
uma vez mais, para o progressivo aumento de prestígio do Cantigas do Maio, um
festival que em definitivo se institucionalizou como um dos melhores do género
em Portugal.
Sem comentários:
Enviar um comentário