22/03/2017

Mistério de Cracóvia no festival do Seixal [Festival Cantigas do Maio]

cultura QUARTA-FEIRA, 7 JUNHO 2000

Trio polaco assina atuação impressionante no Cantigas do Maio

Mistério de Cracóvia no festival do Seixal

Música sobrenatural no Cantigas do Maio. Os polacos Kroke impregnaram a Fábrica Mundet com o aroma do sagrado. A tradição klezmer sem tempo nem fronteiras numa experiência que rondou a transcendência. Desiludiram os Verd e Blu. O festival fechou com rituais africanos da África do Sul e Moçambique.

São apenas três os músicos que constituem os Kroke, em homenagem à cidade polaca de Cracóvia que antes da 2ª Grande Guerra alojava 64 mil judeus e hoje apenas conta umas escassas centenas. Chamam-se Tomasz Kukurba, no violino, Jerzy Bawol, no acordeão, e Tomasz Lato, no acordeão. Steven Spielberg "descobriu-os" há sete anos quando os viu atuar, nessa mesma Carcóvia, na época em que procedia às filmagens de "A Lista de Schindler". O Seixal ficou deslumbrado com os Kroke na noite de sexta-feira. Uma atuação que deixou marcas.
            A noite começou, porém, com alguma desilusão causada pela atuação, aquém das expetativas criadas pelos discos, dos gascões Verd e Blu. Trajando de forma talvez demasiado informal (leia-se "abandalhada") para uma apresentação em público, para mais num festival com a importância do Cantigas do Maio, de bermudas, t-shirts de alças e chinelos, davam a imagem de um grupo de turistas recém-chegados de uma tarde de praia na Caparica. Não seria grave se a prestação musical não se tivesse pautado, como se pautou, pela mesma nota de amadorismo. Os Verd e Blu trataram a belíssima música da Gasconha ("a mais bela do Cosmos", como insistentemente referiu o vocalista e acordeonista Joan-Francés Tisnèr) com uma displicência que não se pode confundir com humor.
            As piadas constantes não disfarçaram a falta de rodagem, as hesitações e as quebras. É verdade que a beleza das polifonias e das melodias instrumentais da música da Gasconha são suficientes para impressionar qualquer público mas fez pena assistir ao modo como os Verd e Blu quase a delapidaram.
            A festa não dispensa o rigor e bem faria o grupo em meditar sobre a diferença entre informalidade e descuido.
            Os Kroke atuaram a seguir. E fez-se luz. Seguindo de perto o alinhamento do novo álbum "The Sounds of the Vanishing World", o trio polaco atuou em crescendo, impondo impercetivelmente um clima de espiritualidade e mistério.
            Ao contrário dos Verd e Blu, surgiram trajados a rigor, a preto e branco, todos de chapéu, com o violinista Tomasz Kukurba, no centro do palco, a impor a imagem de um Freddy Kruger redimido pela sacralidade dos sons. Ele é, de resto, a alma e o ponto focal dos Kroke. A uma técnica irrepreensível alia uma intensidade e uma capacidade de interiorização que ficaram bem patentes no Seixal. A força da música dos Kroke passa em grande parte por esta concentração absoluta de Tomasz Kukurba, pela forma como todas as notas nele se aprumam num eixo apontado para as estrelas.

Percussão contrabaixo

            A meio da atuação já o concerto se transformara num ritual. Kukurba acrescentou ao som amplificado do seu violino, o assobio e a voz, num complemento tímbrico justaposto ao do instrumento. De notar que certas acelerações do violino deveram muito do seu impacto ao fraseado, absolutamente espantoso, do acordeonista Jerzy Bawol, este sim, com uma condução em alta velocidade. Tomasz "aproveitou" esta estrutura milimétrica para colocar, como se costuma dizer, a cereja no cimo do bolo, desenhando ornamentações e uma espacialidade que definem a música do grupo.
            Já perto do final, num dos muitos momentos exaltantes da atuação dos Kroke, Kukurba fez um solo de percussão no tampo do contrabaixo, ao mesmo tempo que Tomasz Lato solava nas cordas. A música klezmer (música judaica tradicional instrumental da Europa do Leste) cortava as amarras do tempo e da história, projetando-se na contemporaneidade e na experimentação. Quando, por fim, os três músicos abandonaram o palco da Mundet, já o espírito dos assistentes planava sobre o Seixal.
            Terra, cores quentes, tambores, danças guerreiras. A noite de encerramento do Cantigas do Maio decorreu num registo diametralmente oposto ao da véspera, com a África a ocupar em toda a linha o festival. Primeiro com as polifonias zulus dos ex-mineiros Colenso Abafana Benkokhelo, da África do Sul, a seguir com a orquestra de timbilas e dançarinos de Venâncio M'bande, de Moçambique.
            Recorreram ambas as formações a coreografias tradicionais ligadas aos usos e costumes das respectivas regiões de origem. Os Colenso mostraram semelhanças com os mais mediáticos Ladysmith Black Mambazo, enquanto os moçambicanos criaram um padrão infantigável de micropolirritmias nas timbilas (família dos xilofones) que permitiu compreender uma das fontes onde foi beber o minimalista Steve Reich... E ou se mergulha nesta música de corpo e alma e se viaja até ao coração da África profunda até se alcançar o transe ou se fica de fora a assistir e então, rapidamente, o fastio se instala. Houve na assistência quem reagisse das duas maneiras. Nós aventurámo-nos na selva e elegemos esta atuação uma das melhores do festival.
            Uma palavra final para os Folia, da Galiza, que, nestas duas últimas noites, a seguir aos concertos principais, souberam criar o melhor ambiente na tenda de convívio, e para a organização, a Associação José Afonso, que, em conjunto com a Câmara do Seixal, contribuíram, uma vez mais, para o progressivo aumento de prestígio do Cantigas do Maio, um festival que em definitivo se institucionalizou como um dos melhores do género em Portugal.

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