cultura
QUARTA-FEIRA, 28 JUNHO 2000
Dulce
Pontes apresenta “O Primeiro Canto” no Coliseu dos Recreios, em Lisboa
O corpo é apenas um invólucro
Nus.
O corpo e a voz. Em "O Primeiro Canto", lugar de encontro de Dulce
Pontes com o sopro que anima o barro que dá forma aos sons. O álbum, galardoado
com o Prémio José Afonso, abre novas vias de exploração a esta cantora que se
enamorou pelos folclores do mundo. Hoje no Coliseu dos Recreios, em Lisboa,
Dulce fará uma vez mais a corte à tradição.
Primeiro foi o
fado. O primeiro amor. Etapa inicial de um percurso feito de procura e
inquietação. E de auto-descoberta. Álbuns como "Lusitana" e
"Lágrimas" revelaram ao público português uma voz personalizada que
em cada nota procurava o seu lugar, os seus lugares naturais. "A Brisa do
Coração" e "Caminhos" abriam novas janelas e alamedas, mas ainda
com o fado a servir de estímulo e protecção.
Colaborações no álbum
"Sognos" de Andrea Bocelli e uma participação na banda sonora do
filme de Gregory Hoblit, "A Raiz do Medo" – que trouxe de novo à tona
a "Canção do mar" antes imortalizada por Amália – projetaram em
definitivo o seu nome aquém e além fronteiras. Esta noite, no Coliseu dos
Recreios, em Lisboa, será mais uma consagração, depois da cantora ter feito
dueto com Caetano Veloso, num espectáculo para 60 mil pessoas que teve lugar na
Páscoa na praia de Ipanema, no Brasil.
Mas Dulce Pontes queria mais, ir
mais longe, afirmar-se não só como cantora de reconhecidos méritos como
compositora capaz do confronto com os outros e consigo própria na descoberta de
novos horizontes musicais. Descobriu-os em "O Primeiro Canto",
vencedor do Prémio José Afonso deste ano, e a voz que no passado se agarrava às
fraldas do fado de Lisboa, deixando-se acariciar pelos elogios dos que viam
nela, como viam noutras, "A nova Amália", libertou-se das amarras e
espantou-se com o universo.
Com este passo Dulce Pontes deu o
seu contributo na concretização de um novo rumo para a música portuguesa,
espelhada na sua dimensão mais universalista. "O Primeiro Canto"
permitiu de igual modo à sua autora completar o tríptico de vozes femininas que
tiraram a música popular portuguesa do gueto das pancadinhas nas costas e da
pequenez de ambições, juntando-se às de Maria João e Amélia Muge.
As estrelas
certas
Não esteve sozinha neste passo nem
rodeada apenas de compatriotas. Para as gravações de "O Primeiro
Canto" a cantora soube rodear-se dos nomes certos que lhe permitissem
movimentar-se com a maior liberdade possível neste território recém-descoberto.
E as "estrelas" não se fizeram rogadas, aceitando o convite: Kepa
Junkera, o acrobata da "trikitixa" basco, Myrdhin, o bardo bretão da
harpa céltica, Andres Norudde, iconoclasta dos suecos Hedningarna, Justin Vali,
virtuoso da valiha, de Madagáscar, Wayne Shorter, um dos "gentlemen"
pioneiros do jazz rock, Trilok Gurtu, mágico das percussões indiano, Jacques
Morelenbaum, violoncelista e arranjador brasileiro, Waldemar Bastos, cantor
angolano apadrinhado por David Byrne, Maria João, a voz-vozes.
O objetivo começou por ser a criação
de um álbum acústico, sem máquinas, onde se cruzassem cantos e tradições. Como
em todo o ato de criação, foi exigida a nudez, o despojamento, condição
necessária para se alcançar a essência que para Dulce Pontes constituiu o mote
impulsionador deste trabalho. Moldou o barro, deu-lhe a forma de canções, umas
próximas de nós, outras mais afastadas, e insuflou-as com o sopro da sua voz,
finalmente embarcada numa caravela pronta a navegar.
Trás-os-Montes, Alentejo, Lisboa... Mais
ao largo, África, Índia... E lugares virgens por desbravar nos mapas da
imaginação. Gelo, fogo, vento, rocha. Os quatro elementos em cruz. Sobre eles e
com eles traçou Dulce Pontes a sua rota de viagens. Giacometti, José Afonso e
Amália acenam adeus no cais que fica sobre as nuvens. Vislumbram-se outros
cantos, novos cantos, para a música tradicional. Dulce Pontes soube, para já,
responder aos desafios musicais de um planeta que rola para o final de um
ciclo.
Certa ocasião, durante o período de
gravações de "O Primeiro Canto", Dulce Pontes contou o modo como se
inspirou para compor a "Modinha das saias", durante uma viagem de
automóvel a caminho de Miranda do Douro: "Tive a imagem de um vulcão na
Ilha Graciosa em cuja cratera a luz penetra segundo uma determinada perspectiva
e que tem uma reverberação sonora de onze segundos". Dulce Pontes nunca
esteve fisicamente lá, recorrendo apenas à descrição que o músico e produtor Tó
Pinheiro da Silva lhe fizera do local. E, no entanto, foi como se estivesse presente.
Talvez porque, como ela diz, "o corpo é apenas um invólucro".
DULCE PONTES
LISBOA
Coliseu dos Recreios, 22h45.
Bilhetes
entre 2000$ e 5000$.
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