22/03/2017

O corpo é apenas um invólucro [Dulce Pontes]

cultura QUARTA-FEIRA, 28 JUNHO 2000

Dulce Pontes apresenta “O Primeiro Canto” no Coliseu dos Recreios, em Lisboa

O corpo é apenas um invólucro

Nus. O corpo e a voz. Em "O Primeiro Canto", lugar de encontro de Dulce Pontes com o sopro que anima o barro que dá forma aos sons. O álbum, galardoado com o Prémio José Afonso, abre novas vias de exploração a esta cantora que se enamorou pelos folclores do mundo. Hoje no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, Dulce fará uma vez mais a corte à tradição.

Primeiro foi o fado. O primeiro amor. Etapa inicial de um percurso feito de procura e inquietação. E de auto-descoberta. Álbuns como "Lusitana" e "Lágrimas" revelaram ao público português uma voz personalizada que em cada nota procurava o seu lugar, os seus lugares naturais. "A Brisa do Coração" e "Caminhos" abriam novas janelas e alamedas, mas ainda com o fado a servir de estímulo e protecção.
            Colaborações no álbum "Sognos" de Andrea Bocelli e uma participação na banda sonora do filme de Gregory Hoblit, "A Raiz do Medo" – que trouxe de novo à tona a "Canção do mar" antes imortalizada por Amália – projetaram em definitivo o seu nome aquém e além fronteiras. Esta noite, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, será mais uma consagração, depois da cantora ter feito dueto com Caetano Veloso, num espectáculo para 60 mil pessoas que teve lugar na Páscoa na praia de Ipanema, no Brasil.
            Mas Dulce Pontes queria mais, ir mais longe, afirmar-se não só como cantora de reconhecidos méritos como compositora capaz do confronto com os outros e consigo própria na descoberta de novos horizontes musicais. Descobriu-os em "O Primeiro Canto", vencedor do Prémio José Afonso deste ano, e a voz que no passado se agarrava às fraldas do fado de Lisboa, deixando-se acariciar pelos elogios dos que viam nela, como viam noutras, "A nova Amália", libertou-se das amarras e espantou-se com o universo.
            Com este passo Dulce Pontes deu o seu contributo na concretização de um novo rumo para a música portuguesa, espelhada na sua dimensão mais universalista. "O Primeiro Canto" permitiu de igual modo à sua autora completar o tríptico de vozes femininas que tiraram a música popular portuguesa do gueto das pancadinhas nas costas e da pequenez de ambições, juntando-se às de Maria João e Amélia Muge.

As estrelas certas

            Não esteve sozinha neste passo nem rodeada apenas de compatriotas. Para as gravações de "O Primeiro Canto" a cantora soube rodear-se dos nomes certos que lhe permitissem movimentar-se com a maior liberdade possível neste território recém-descoberto. E as "estrelas" não se fizeram rogadas, aceitando o convite: Kepa Junkera, o acrobata da "trikitixa" basco, Myrdhin, o bardo bretão da harpa céltica, Andres Norudde, iconoclasta dos suecos Hedningarna, Justin Vali, virtuoso da valiha, de Madagáscar, Wayne Shorter, um dos "gentlemen" pioneiros do jazz rock, Trilok Gurtu, mágico das percussões indiano, Jacques Morelenbaum, violoncelista e arranjador brasileiro, Waldemar Bastos, cantor angolano apadrinhado por David Byrne, Maria João, a voz-vozes.
            O objetivo começou por ser a criação de um álbum acústico, sem máquinas, onde se cruzassem cantos e tradições. Como em todo o ato de criação, foi exigida a nudez, o despojamento, condição necessária para se alcançar a essência que para Dulce Pontes constituiu o mote impulsionador deste trabalho. Moldou o barro, deu-lhe a forma de canções, umas próximas de nós, outras mais afastadas, e insuflou-as com o sopro da sua voz, finalmente embarcada numa caravela pronta a navegar.
            Trás-os-Montes, Alentejo, Lisboa... Mais ao largo, África, Índia... E lugares virgens por desbravar nos mapas da imaginação. Gelo, fogo, vento, rocha. Os quatro elementos em cruz. Sobre eles e com eles traçou Dulce Pontes a sua rota de viagens. Giacometti, José Afonso e Amália acenam adeus no cais que fica sobre as nuvens. Vislumbram-se outros cantos, novos cantos, para a música tradicional. Dulce Pontes soube, para já, responder aos desafios musicais de um planeta que rola para o final de um ciclo.
            Certa ocasião, durante o período de gravações de "O Primeiro Canto", Dulce Pontes contou o modo como se inspirou para compor a "Modinha das saias", durante uma viagem de automóvel a caminho de Miranda do Douro: "Tive a imagem de um vulcão na Ilha Graciosa em cuja cratera a luz penetra segundo uma determinada perspectiva e que tem uma reverberação sonora de onze segundos". Dulce Pontes nunca esteve fisicamente lá, recorrendo apenas à descrição que o músico e produtor Tó Pinheiro da Silva lhe fizera do local. E, no entanto, foi como se estivesse presente. Talvez porque, como ela diz, "o corpo é apenas um invólucro".

DULCE PONTES
LISBOA Coliseu dos Recreios, 22h45.
Bilhetes entre 2000$ e 5000$.

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