26/05/2009

"Quando vejo o abismo sou o primeiro a saltar" [Paulo Bragança]

Sons

24 de Outubro 1997

Paulo Bragança, no CCB

“Quando vejo o abismo sou o primeiro a saltar”

O rosto lívido. Um espectro. A capa de Coimbra, levantada sobre o pescoço, sugere o vampiro, o sugador de sangue. O ambiente é gótico, arrepiante. O novo fado de Paulo Bragança, que amanhã se apresentará no Grande Auditório do CCB, atrai pelo lado obscuro. O “Fado falado”, de Villaret, fala agora do problema da heroína. No final, o fadista sai de si mesmo, numa busca ávida de luz.

PÚBLICO – Como vai ser a estrutura do espectáculo?

Paulo Bragança – É quase uma peça de teatro. Há um personagem que está em conflito consigo próprio e que vai, à medida de cada tema, pensando se fica nas raízes do fado ou se as subverte. O começo vai ser com fado puro, embora com algumas dissidências em termos verbais e musicais. Depois surgem momentos de conflito. No “Fado do herói” já há, quase, um aviso à nação. A seguir é o “Adeus”. “Adeus pátria linda, adeus querido lar, adeus Tejo amado até eu voltar”, aí o personagem já está numa galera, seguindo-se um processo interior, com nova quebra e dois temas intimistas, “Pecado I” e “Pecado II”, até se chegar a uma transnacionalidade, uma “transfusogressão” (fui eu que inventei a palavra), onde surgem temas que não são portugueses nem sequer são cantados em língua portuguesa. Dois temas na língua “roman”, dos romenos, uma língua cigana. É a procura do singular no universal, sem perder as raízes. Até se chegar ao último tema que se chama “Névoa”, onde se diz que “há sempre entre mim e o mundo uma névoa que às vezes me ataca e me faz refém de uma solidão tão fria que não me dá trégua, guardador de um cofre onde não há vintém”. As palavras são do Carlos Maria Trindade com música minha. É já um novo ser, que não opina, não julga, é só um “voyeur” que observa tudo de cima. O corpo não existe, só existe um ser pensante. Quase uma diáspora kafkiana.
P. – Falou há pouco de uma “viagem” à Roménia. É impossível não pensar na célebre personagem do Conde Drácula que assombra a sua apresentação...
R. – Na origem, não foi propositado. Essa ligação fez-se recentemente. É a ligação ao sangue. Depois, a música cigana é tão fado como o nosso Fado. Desde miúdo, quando era “teenager”, que comecei a estudar romeno sozinho, de modo a conhecer melhor alguns dos poetas deles. Mas não é o terror que me assusta, vejo o terror apenas como um aspecto fantástico, como a ficção científica.
P. – O seu espectáculo centra-se no lado mais sombrio do fado...
R. – Se reparar, a capa de Coimbra tem a ver com isso. Por acaso a capa que uso agora é mais vampiresca... Uma capa, quando existe, é para guardar qualquer coisa escondida, é um mistério. O estudante de Coimbra também transporta em si algum desse vampirismo. Ou devia...
P. – Que tipo de envolvimento com o público procura criar?
R. – De um modo geral as pessoas ficam desconcertadas. Pela positiva. Não se sentem assustadas mas, talvez, intimidadas. Embora houvesse quem sentisse realmente medo e se agarrasse à cadeira... Porque o medo também suscita fascínio.
P. – E o Paulo Bragança, não se auto-sugestiona com a personagem que criou?
R. – Quando vejo o abismo sou o primeiro a saltar. Não tenho medo. Mas tenho respeito pelo medo.
P. – Presumo que, cada vez mais, a sua relação com os puristas do fado é conflituosa?
R. – Eles, à minha frente, nunca me negam. Dão uma no cravo e outra na ferradura. Eu até percebo a posição deles. Mas isto não é nada contra eles, mas sim contra a estagnação do fado. Enquanto que eles, por vezes, me atingem directamente, eu não os procuro atingir a eles. O que procuro atingir é a consciência colectiva nacional.
P. – Que tipo de som se poderá escutar amanhã no CCB?
R. – Um som estranho. Com um compromisso entre a ciência e um lado acústico. Guitarras portuguesas lado a lado com “samplers” e tecnologia MIDI.
P. – De que modo é explorada a tal teatralidade que há pouco referiu?
R. – Por exemplo, abro com o “Fado falado”, onde reverti o texto, pegando nele como símbolo do teatro e transformando-o num monólogo, com uma nova interpretação sonora e textual, bastante dissidente. Por isso lhe chamei “Fado falado mudado”. Aproveito para falar do problema da heroína. É um texto bastante duro, em que chamo as coisas pelos nomes, numa história que de facto se passou na Meia-Laranja. Em termos formais, ouvi muitas vezes o original do Villaret. A minha versão é codificada ao milímetro, sílaba por sílaba, metricamente igual.
P. – Qual é a sua atitude perante o problema da toxicodependência?
R. – Não estou a julgar ninguém mas a constatar uma realidade. Algo de grave que se está a passar no país. Ninguém diz que o rei vai nu. Não há nenhuma família portuguesa, hoje em dia, que não tenha essa mácula, seja por um filho ou por um primo. E também verifico que a polícia só apanha cocaína e haxixe. Heroína nunca se apanha. Chega-se a uma ladeia, como eu já cheguei – e isto é o que me dizem porque eu não preciso nada dessas merdas – a uma aldeia de Trás-os-Montes, seja onde for, no local mais recôndito, queres um charro, não há. Ou se houver, custa dez contos a grama. Cocaína pode custar 25 contos uma grama. E a heroína custa mil escudos e há a toda a hora. 24 horas por dia, nas barbas da polícia, em todo o lado. O Casal Ventoso é uma imagem pálida do que se está a passar no resto do país. E o mais grave é que a heroína é gerida por questões de Estado, por alguém... Por isso é que eu canto uma parte que diz “mãos de sangue na seringa que rasgada a veia pinga, mãos de Estado maquilhado, mãos de serra e queima a terra, mãos bem vendidas, muito finas, mãos vendadas a arrecadar, não há paixão, crime ou morte onde há um filão a correr forte”... É uma situação que me incomoda. Repito: é preciso dizer que o rei vai nu.
P. – Uma forma velada de manter os jovens sob controle?
R. – É uma forma de adormecer as pessoas. E não são só os mais novos. As velhas, neste país, andam todas drunfadas, porque o que se vende mais no país são drunfes e é o que tem desconto da Assistência Social. Não há uma velhinha que não tenha um drunfe em casa, um Xanax, um valium, um ansiolítico qualquer. Depois, os putos têm heroína. Putos de 16 anos, que eu conheço, que picam, nem sequer fumam, picam! Interessa a alguém, de facto, que o povo ande acalmado. Dêem heroína ao pessoal, para se tornarem nuns energúmenos que não chateiam!...

1 comentário:

Jorge Mendes disse...

Obrigado por esta entrevista de Paulo Bragança. Já agora ele tem página no Facebook em http://www.facebook.com/pages/PAULO-BRAGANCA/115202796005, e em www.myspace.com/paulobraganca