22/09/2009

Deu a mosca na sanfona [Realejo]

Sons

20 de Março 1998

Realejo montam novos cenários

Deu a mosca na sanfona

Demorou, mas finalmente vai ver a luz do dia o segundo álbum dos Realejo, intitulado “Cenários”. Excelentes executantes, uma sonoridade única e o prazer intenso de tocar combinam-se num dos grandes álbuns folk portugueses de sempre. Os seus autores explicaram ao PÚBLICO as razões da demora, em que a editora tem culpas no cartório, e a nova postura em palco que trouxeram de Saint Chartrier. Na Galiza, os Realejo estão a provocar uma pequena revolução.

Fernando Meireles, construtor de instrumentos, tocador de sanfona, bandolim e cavaquinho, e Amadeu Magalhães, arranjador, gaita-de-foles, ponteira, flautas, concertina, cavaquinho, bandolim, braguesa e percussões, constituem o núcleo principal dos Realejo, grupo de música de raiz tradicional originário de Coimbra e um dos mais originais da cena folk nacional. A estes e a Ofélia Ribeiro, que já participara no álbum de estreia do grupo, “Sanfonias”, juntaram-se os novos elementos José Nunes, guitarra e bandolim, e Miguel Areia, violino. Prosseguindo um trabalho de renovação cujo espírito vai muito além de uma prospecção do passado, os Realejo são, juntamente com os Vai de Roda e os Gaiteiros de Lisboa, um dos grupos cuja existência permite acreditar que a música portuguesa pode avançar no mesmo passo do resto da Europa.
PÚBLICO – Por que razão foi preciso esperar tanto tempo pela edição deste vosso segundo álbum?
FERNANDO MEIRELES – No nosso contrato temos uma cláusula em que não podemos dizer mal da editora! [Risos.] De facto já tínhamos este disco preparado desde 1996 e gravado desde o ano passado. Digamos que houve alguns dos chamados “problemas técnicos” que atrasaram todo o processo... A verdade é que temos gravado imenso material e estamos a metê-lo na gaveta. Gravámos o primeiro disco em 95, o segundo deveria ter sido gravado em 1996, em 97 poderíamos ter gravado o terceiro e tínhamos agora o quarto... Mesmo o primeiro disco poderíamos tê-lo feito dois anos antes...
P. – Esse atraso sistemático não tem prejudicado a carreira do grupo?
F. M. – Obviamente que sim. São paragens forçadas.
AMADEU MAGALHÃES – O grupo está sempre em evolução. A editora, fazendo este tipo de coisas, não nos deixa progredir em termos de trabalho. Não conseguem acompanhar o nosso ritmo.
P. – De acordo com essa evolução, o que é que mudou de “Sanfonias” para estes novos “Cenários” dos Realejo?
F. M. – Estamos a tocar cada vez melhor os instrumentos e a experimentar, com eles, sonoridades e ritmos novos.
P. – O som do grupo sugere uma grande cultura e hábitos de audição regulares da vossa parte. É verdade?
F. M. – Eu ouço muita música. O Amadeu não ouve tanto, o que é bom, porque acaba por fazer as coisas sem sofrer grandes influências exteriores.
A. M. – Sou o controlador... Faço os arranjos e componho os temas originais.
F. M. – Em relação aos novos elementos fui eu que lhes incuti o gosto por esta música. Tenho e ouço imensos discos, que estou sempre a mostrar aos outros. Por exemplo, comprei ultimamente o novo “Hippjock”, dos Hedningarna, dos quais gosto imenso, embora reconheça que estão a entrar um bocado em demasia nos ritmos de discoteca... Também comprei o disco de estreia de um novo grupo irlandês, os Danú, que adquiri no Festival de Saint Chartrier deste ano, no qual participámos. Também comprei um álbum dos franceses Yole. E estamos a ouvir muito os Berroguetto. Em relação à sanfona, gosto de Nigel Eaton, e, dos franceses, Gilles Chabenat, Patrick Bouffard...
A. M. – Também ouvimos muito o Júlio Pereria. Na guitarra, gosto de Preston Reed. Na gaita-de-foles, Carlos Nuñez.
P. – Os mais novos do grupo, o que é que ouvem? Têm alguns heróis?
JOSÉ NUNES – Júlio Pereira! Sou o fã número um dele.
MIGUEL AREIA – Eu ouço outro tipo de coisas, devido à minha formação clássica. No violino clássico admiro o Isaac Stern. Na tradicional ainda não encontrei referências.
OFÉLIA RIBEIRO – Violoncelistas da clássica: Pablo Casals, Rostropovitch, Misha Maiski.
P. – No início de carreira assumiam-se como um grupo de folk de câmara. Mantêm a mesma postura, sobretudo em palco?
F. M. – Não, estamos mais voltados para o público, há uma empatia maior. Em certos temas tocamos de pé. E o novo reportório é mais dançável, mais extrovertido.
P. – Mas esse lado mais intimista, pelo menos a julgar pelo álbum, não desapareceu...
F. M. – Claro, não deixámos nunca de assumir esse lado. Continuamos a actuar, sempre que nos pedem, em igrejas ou em salas de museus. Só que agora, quando tocamos ao ar livre, o som é diferente, a dinâmica mudou completamente, amplificámos os instrumentos...
P. – Podendo parecer odiosas as comparações, é lícito afirmar que, em oposição ao lado mais conceptual dos Vai de Roda ou dos Gaiteiros, os Realejo são mais espontâneos, mais estritamente “musicais”?
A. M. – Para nós é simples. O que gostamos tocamos – com toda uma vivência cultural implícita. O que precisamos, e o que queremos, é tocar bem, tirar o maior partido possível dos diversos instrumentos. Não queremos sintetizadores para fazer a chamada “cama”. Preferimos desenvolver ao máximo os instrumentos tradicionais. Só depois é que poderemos, eventualmente, partir para outros caminhos.
P. – Em Portugal, e em particular neste género de música, essa exigência técnica não faz parte dos hábitos da maioria...
F. M. – Nunca houve preocupação dos construtores em fazer bons instrumentos. E as pessoas que os tocam não têm a preocupação de os tocar bem. O único que deu um pontapé nesta situação foi o Júlio Pereira. A partir dele é que apareceu muita gente a aperceber-se de que era possível fazer melhor com os nossos instrumentos, a nossa cultura e as nossas vivências. Em Portugal começa a acontecer agora o que há muito já acontece na Irlanda e, mais recentemente, na Galiza, em que o nível técnico médio dos executantes é elevadíssimo. Em Coimbra está a acontecer um pouco isso. O Amadeu dá aulas. Eu ensino a fazer instrumentos. Já há gente que aparece a querer tocar o bandolim ou o cavaquinho como eles devem ser tocados. Mas tem sido um trabalho apenas custeado por nós, os apoios oficiais são nulos.
P. – Os Realejo têm, cada vez mais, um som europeu, na linha de timbres quentes (gaita-de-foles, sanfona, violino, ausência quase total de percussões) de grupos como os Yole ou os Ad Vielle Que Pourra. Concordam?
A. M. – Sim, e as referências tradicionais estão, sobretudo, implícitas. Um tema como a “Cantiga do realejo” não soa a tradicional mas a música de câmara ou a música antiga.
F. M. – Não vamos tocar a música de um cavador como ele a tocava na origem. Pegamos nos temas apenas porque gostamos deles. É a única forma de manter viva uma tradição.
P. – Qual tem sido a recepção da vossa música no estrangeiro?
F. M. – Como já dissemos, tocámos o ano passado em Saint Chartrier. Foi uma experiência muito intensa para todos nós. Nunca tínhamos estado num ambiente musical tão intenso. Apercebemo-nos de muitas coisas. Mesmo a nossa nova postura em palco mudou um bocado por causa disso.
P. – E a Galiza?
F. M. – Já tocámos lá várias vezes. Aconteceu mesmo uma coisa muito gira. Conhecemos muita malta da Galiza e, quando os conhecemos, os galegos eram muito fundamentalistas. Agora já não são tanto; se calhar, um bocadinho por causa da nossa influência. Já não é só a gaita com gaita, começam a meter guitarras. Tocam na sanfona temas para gaita. Até já querem a “mosca” [pormenor técnico que permite, por uma espécie de sacudidela brusca na manivela, obter um timbre adicional e contrastante com a “drone” de fundo] na sanfona!


Outras ligações

Fernando Meireles, Amadeu Magalhães e Ofélia Ribeiro, além dos Realejo, integram uma formação de música antiga, os Ars Musicae, sob a direcção artística de Virgílio Caseiro, um musicólogo de Coimbra.

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