Sons
6 de Março 1998
Tocam guitarra mas não são guitarristas
6 de Março 1998
Tocam guitarra mas não são guitarristas
O outro lado existe
Fernando Cunha, guitarrista dos Delfins, e Flak, antigo guitarrista dos Rádio Macau, vão lançar os seus álbuns de estreia a solo, intitulados “O Invisível” e “Flak”. O primeiro está cheio de estrelas convidadas, instalando-se confortavelmente no cadeirão do “mainstream”. O segundo investe no psicadelismo e na reconversão do “easy listening”.
Nem um nem outro se consideram verdadeiros guitarristas, mas antes compositores de canções. Mais ou menos afastados da ortodoxia, tanto Flak como Fernando cunha renegam o hermetismo do discurso. Os seus heróis e amigos é que pertencem a círculos diferentes.
FLAK
PÚBLICO – Considera-se um guitarrista ou outra coisa qualquer?
FLAK – Estou mais exposto como guitarrista. Nos tempos de escola comecei por tocar bateria. Depois houve um assalto à sala de ensaios e ficámos todos sem o material. Fiquei sem a bateria e comecei a tocar guitarra. Sempre toquei guitarra, não como guitarrista, mas porque era um instrumento que me permitia compor canções.
P. – Tornou-se conhecido nos Rádio Macau, um grupo de rock, mas a partir de determinada altura começou a notar-se que os seus horizontes musicais eram outros...
R. – Nos anos 90 resolvi que me queria dedicar à música. Não queria pertencer só a uma banda de rock daquelas que chegam aos 30 anos e cada um vai fazer outras coisas porque a música já não dá. Fui alargando os meus horizontes musicais, perceber por que é que tocava aquele tipo de música. Comecei a estudar música e a frequentar o Hot Club, não para tocar jazz, mas para aprender determinadas ideias sobre harmonia. E ouvia música clássica, música contemporânea, música improvisada. E guitarristas como Fred Frith e Robert Fripp. A música pop e rock já não me chegavam.
P. – Quando começou a integrar a electrónica na sua música?
R. – Foi na mesma altura. Aliás, coincidente com uma viragem no som dos Rádio Macau através da utilização de samplers e de computador. Antes de usar samplers, já fazia outro tipo de montagens, em fita magnética e gravadores de quatro pistas. Só mais tarde é que tive dinheiro para comprar um sampler, um Akai que, na altura, era caríssimo. Juntei o dinheiro todo para o comprar. A partir daí tenho-o usado sempre. Mais do que tocar, gosto de ouvir as coisas que faço. Aliás, muitas vezes, tocar desconcentra-me um bocado, tira-me a noção do conjunto.
P. – Porque é que demorou tanto tempo a gravar um disco a solo?
R. – A certa altura propus-me fazer um disco em que eu próprio iria cantar as canções. Nos Rádio Macau limitava-me a tocar e a compor. Teria sido mais fácil para mim ir para outra área, mais instrumental, mas resolvi cantar. Só que não tinha experiência. Então arranjei uma banda. Não eram muito bons músicos, mas eram músicos que escolhi mais por empatia e porque tinham paciência para me aturar. E comecei a cantar, a princípio, muito mal. Mas resolvi não desistir. Com os concertos, as coisas foram melhorando, nas demos fui colocando a voz de maneira mais satisfatória. Até chegar a uma altura em que achei que estava em condições de gravar.
P. – O ambiente geral de “Flak” aponta para uma revisão psicadélica, em particular nas quase citações aos Pink Floyd com Syd Barrett.
R. – Quis juntar no formato de canções pop todas as coisas de que gostava. Há 15 anos ouvi pela primeira vez, em cassete, “The Piper at the Gates of Dawn”, dos Pink Floyd, que adorei. Naquela altura, costumava dizer à Xana que haveria de fazer um dia um disco assim. Sabia que era impossível fazê-lo com os Rádio Macau. Depois houve a coincidência de no princípio dos anos 90 surgirem bandas que recuperavam algumas noções do passado, como os Mercury Rev ou os Boo Radleys, que misturavam as guitarras “noise” ao tipo de sons do “Sgt. Peppers” ou do “Pet Sounds”.
P. – Noutros temas do álbum, é notória uma apropriação da estética do “easy listening”, à luz dos anos 90, de bandas como os Stereolab e os High Llamas...
R. – Gosto dessas duas bandas, mas não foi nada intencional. Tem tudo a ver com sonoridades que vêm de trás. Pode encontrar-se essa influência até em bandas como os Blur. Mas o disco inclui outro tipo de coisas, desmontagens várias, ou aproximações ao “trip-hop”.
P. – Os textos que canta parecem não fazer sentido para além do som das palavras. Foi esse aspecto fonético que o interessou?
R. – Quase todos os textos foram construídos com base em “cut-ups”. Utilizei aquela ideia da linguagem que é um vírus que veio do espaço. Resolvi cortar uma quantidade de frases e ir colando nas músicas. À medida que ia ouvindo as gravações, ia juntando mais frases, até ter o caixote do lixo cheio de frasezinhas cortadas que iam sendo substituídas por outras. As letras nem sequer vão surgir na capa do disco.
P. – “Flak” é uma “trip” sonora que parece ter sido feita de propósito para ouvidos alterados pelo ácido...
R. – Sob o efeito de drogas as coisas soam sempre de outra maneira. Tem a ver com as pessoas. Eu tenho muita sorte, não tenho qualquer síndrome de dependência. Acho que já experimentei as drogas todas, pelo menos as que são acessíveis, e nunca fiquei dependente. E não há droga que eu tome regularmente. Mas é verdade que, quando comecei a ouvir música, a droga teve um bocado de influência. Até 1974, 75, havia muita erva. Quando fumava aquela erva angolana ouvia determinados discos e descobria neles determinados sons que não conseguia ouvir quando estava no estado normal. Fumava, punha o disco e ficava a ouvir horas e horas, quase que ouvia, ou imaginava, os dedos do teclista a tocar nos teclados...
P. – Concorda que a música de uma geração corresponde sempre ao tipo de droga que está mais em voga?
R. – Sim. Apesar de neste momento as coisas estarem mais comercializadas. As pessoas agora são levadas por determinados caminhos, não porque elas escolham, mas porque o aspecto social as empurra para esses caminhos. A música dos anos 60 tinha muito a ver com o ácido, aquelas bandas todas da West Coast, os Grateful Dead e, do outro lado, os Pink Floyd, com o Syd Barrett. Uma coisa acabava por modelar a outra. Se calhar, se não se estivesse debaixo daquelas drogas ninguém conseguia suportar aqueles longos solos de guitarra das “acid jams”. Havia um determinado estado de espírito, um tempo de concentração próprio. Hoje já não tenho paciência para aturar um improviso de meia hora.
P. – Então que discos é que costuma ouvir? Quais foram os últimos?
R. – Ouço todos os tipos de música e compro regularmente discos. Tantos que é difícil apontar um. O último que comprei foi o dos Air. Ouvi outro, de um músico americano, Todd Levin, com a Orquestra Sinfónica de Londres, para a Deutsch Gramophon, com uma batida de dança, de “disco”. Não sei como é que conseguiu editar aquilo na Deutsch Gramophon...
P. – Considera-se um músico “outsider”?
R. – Sou completamente “outsider” por uma razão: para as pessoas que gostam de música mais “mainstream”, a minha música é um bocado esquisita, e para as vanguardas sempre fui olhado como um músico pop.
FERNANDO CUNHA
PÚBLICO – Tendo estado ligado a grupos de grande projecção mediática, como os Resistência, e no presente aos Delfins, não deve ter esse tipo de problemas?
FERNANDO CUNHA – É preciso não esquecer que os Delfins, no início da carreira, foram considerados um grupo de “personas non gratas”, embora já fizessem o mesmo tipo de canções que fazem actualmente...
P. – Gravou este seu primeiro disco a solo por algum problema de afirmação do ego?
R. – Não. O disco nasceu muito para trás, em 1992, na sequência do sucesso dos Resistência. Houve na altura um interesse da editora para que eu e o Miguel Ângelo assinássemos um contrato para um disco a solo. Sem uma data fixa de edição e com total liberdade estética. Fui adiando enquanto pude, até que tive mesmo que cumprir o contrato, desse por onde desse...
É óbvio que num disco destes, posso fazer mais coisas além das que faço nos Delfins. Por exemplo, o luxo de poder convidar todos os amigos que quis. [N.R.: E são de peso, alguns destes amigos: Miguel Ângelo, Pedro Ayres Magalhães, Olavo Bilac, Marta Dias, General D, Boss A.C., Afrikan Voices e Rui Velosos, entre outros.]
P. – Mas não gostava de ser uma estrela?
R. – Nos Delfins, eu e o Miguel sempre fizemos uma dupla fortíssima, porque cada um sabe perfeitamente qual é o seu lugar. O Miguel é quem aguenta a pressão mediática, o que me liberta para poder produzir os discos. Além disso, qualquer um que faça parte dos Delfins acaba por ser já uma estrelinha [risos]. Ser o “front man”? Já passei por isso, um bocadinho, nos Resistência. Eram uma quantidade de “front men”, mas a música que calhou ser eu a cantar, “Não sou o único”, dos Xutos, foi a que teve maior sucesso do álbum...
Nessa altura nem podia andar na rua, toda a gente me reconhecia.
P. – “O Invisível” não é propriamente um disco de guitarras...
R. – É um disco de canções pop em que todos os instrumentais foram construídos primeiro. Por essa razão, os primeiros exemplares vão incluir um segundo disco de oferta só com essas partes. Provavelmente poderei fazer remisturas a partir delas. As melodias que lá estão são diferentes das que foram depois aproveitadas pelas vozes.
P. – Então também não se considera um guitarrista, como o Flak?
R. – Não, nunca me considerei um guitarrista, em termos de instrumentista, ou de “guitar hero”. Aliás, comecei por tocar baixo. Só passei para a guitarra porque contratámos outro músico para o baixo, que tocava melhor do que eu, e não havia ninguém para tocar guitarra. Mas o que eu gosto mesmo de fazer é de escrever canções.
Fernando Cunha 10 Estrelas Para Um Produtor
1986 – Produz “Libertação”, dos Delfins.
1987 – Produz “U Outro Lado Existe”, dos Delfins.
1990 – Produz “Desalinhados”, dos Delfins.
1990 – Integra o projecto Resistência, do qual produz alguns temas.
1993 – Produz “Ser Maior – Uma História Natural”, dos Delfins.
1995 – Produz o álbum de estreia dos Pólo Norte, “Expedição”.
1995 – Produz a estreia dos Santos e Pecadores, “Onde Estás”.
1996 – Produz “O Caminho da Felicidade”, dos Delfins.
1997 – Produz “Saber Amar”, dos Delfins.
1997 – Produz “Os Químicos do Céu”, dos Astronautas.
Flak 10 Estrelas Para Um Conceptualista
1983 – Forma os Rádio Macau com Xana e Alex.
1984 – Grava o primeiro álbum da banda, do qual é o principal compositor.
1988 – Produz o primeiro disco dos Requiem pelos Vivos.
1988/89 – Colabora no jornal “Sete”, onde escreve crónicas semanais.
1989 – Produz o quarto álbum dos Rádio Macau, “O Rapaz do Trapézio Voador”. Toca com os Sétima Legião.
1990 – Forma A Máquina do Almoço Dá Pancadas, com os quais participa na colectânea “Em Tempo Real”.
1992 – Produz o quinto álbum dos Rádio Macau, “A Marca Amarela”. Actua ao vivo com os Palma’s Gang e integra o projecto Plopoplot Pot.
1994 – Produz o primeiro CD a solo de Xana.
1995 – Participa na colectânea “Espanta Espíritos” com o tema “Mais”.
1997 – Participa no álbum de Sérgio Godinho, “Domingo no Mundo”.
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