05/09/2009

Infecção nas amígdalas do mundo [Lászlo Hortobagyi]

Sons

20 de Fevereiro 1998
DISCOS

Infecção nas amígdalas do mundo

“A Gãyan Uttejak Society oferece-lhe uma viagem imaginária através do Império de Amygdala, no espírito de uma expedição etnomusicológica da mudança do século. ‘Traditional Music of Amygdala’ é uma ficção musicológica e sociológica com raízes na cultura humana, no que diz respeito à alienação e à morte, envolvidos em rituais e mistérios. ‘Amygdala’ (‘Corpus Amygdaloideum’) deve ser procurada no nosso cérebro: escondido no seu interior encontra-se o comportamento humano, herdado geneticamente, e o sistema instintivo formado pela cultura e o meio ambiente.”

A citação, retirada da capa, serve de pórtico de entrada para “Traditional Music Of Amygdala” (9), álbum de estreia (1991) do húngaro Lászlo Hortobagyi – cuja discografia completa surge agora pela primeira vez em Portugal no selo Erdenklang, com distribuição da Megamúsica –, na sequência da colectânea “The Transglobal and Magic Sounds of Lászlo Hortobagyi”, já recenseada nas páginas deste suplemento. Agora é a história completa. Um universo mágico equivalente ao “Senhor dos Anéis” de Tolkien, na literatura, ou ao épico musical/filosófico/linguístico em torno do planeta Kobaїa, imaginado por Christian Vander com os Magma.
Lászlo Hortobagyi criou a Gãyan Uttejak Society em 1981, em Budapeste, uma organização da qual faz parte um estúdio de gravação e um arquivo de músicas orientais, único existente no Leste europeu. O nome que lhe foi atribuído pelo músico húngaro foi retirado de uma sociedade de músicos hindo-muçulmanos, fundada por V. N. Bhãtkhãnde em 1884 e extinta em 1917.
A partir destes pressupostos, em que a teoria e a história se confundem com o sonho, e com estes meios, a viagem torna-se imprevisível. Hortobagyi encara a música étnica como os Residents encaram a música de dança ou os Biota a música electro-acústica. É uma perspectiva desfocada e deformada, um híbrido multifacetado, um mutante alucinatório, com os mesmos contornos trémulos das falsas pinturas de Max Ernst que o próprio compositor pintou algumas das suas obras.
Hortobagyi mistura ritmos tecno com “drones” indianas e cântico gregoriano da Idade Média. Percussões rituais com maquinaria industrial, danças “folk” com sequenciações electrónicas e samplagens ficcionais. “The ritual of Mahãparinirvãna”, “The mãrg of Excessus”, “The Inanis mantra” e “Hypotaxis” são alguns dos títulos da primeira incursão de Hortobagyi nas circunvalações do cérebro infectado de Amygdala, cuja alquimia sonora não deixa de evocar uma obra como “Zamia Lehmanni”, dos SPK. O livrete inclui a descrição de mitos e fotos (incluindo montagens de arquitecturas tradicionais unificadas num território comum) deste universo, onde os “factos” se confundem com a imaginação.

Os “Anais da Sociedade Gayan Uttejak” prosseguem com “Ritual Music of the Fomal – Hoot Al-Ganoubi” (8), editado em 1994. Aberrações de pedra projectadas em holograma, contra a constelação mítica dos árabes, “Fomal – Hoot Al-Ganoubi”, igualmente uma obra esotérica escrita no séc. XII. “Barocus raga”, um dos temas incluídos na colectânea “The Transglobal...”, inclui “música matemática de meditação, segundo uma oração rezada por Sâlâtu Al-Maghribi na mesquita”. A instrumentação inclui tablas digitais e “Tânpurine dream”, executado por Cyb.R.S.-77o. O Coro da Catedral de Yeb Shera Häfizullâh e a orquestra de Cibavit Eros Al-Urmawî e do rasta eléctrico Mirmengül, a par da utilização de “miseclestial metals”, juntam-se em “Geetajürk”, uma cantata turca-barroca ao estilo das tradições Ars Transoxania Rediviva. Mais acessível que “Amygdala”, “Al-Ganoubi” inclui pela primeira vez uma batida tecno em “Awrâd-î-abbá thulie”.
Não é tão confuso como parece. Em cada um dos seus trabalhos, Hortobagyi recicla músicas, técnicas, estilos e tradições reais, do Ocidente e do Oriente, de localização e proveniência explícitas, como a cantata, o “concerto”, a raga indiana, o “taqasim” árabe ou o cântico gregoriano, para chegar a algo que oscila entre o pesadelo, a hipnose e o encantamento. Imaginem os sons, todos os sons, compilados pela dupla Roberto Musci/Giovani Vennosta, concentrados numa ideia totalitária elaborada por um homem só.
Segundo a mesma lógica, o capítulo seguinte dos Anais, “The Arcadian Collection”, faz a conversão da Idade Média, plasmando-a, ainda, na Índia e nos países árabes, como são percebidos por Lászlo Hortobagyi num tema capitular como “Rex Virginium”. Uma colecção elaborada a partir do Departamento de Etnomusicologia de Computadores da Sociedade Gáyan Uttejak. Mais dançável e jogando menos com o efeito surpresa. O fantasma de Demetrio Stratos, dos Area, canta no tema de abertura. Música recomendada para “late night trips” e “trance moments” como se sugere na contracapa.
Orquestras de gamelão indonésio fazem casamentos contranatura com o canto de monges, cromornas medievais choram em conjunto com os sintetizadores. Um órgão de igreja abre as portas do Paraíso. Ou do Inferno. A solução final para a música do mundo. É a resposta de Hortobagyi ao domínio e expansão das sociedades industriais modernas sobre as civilizações tradicionais, no seu processo de transformação do mundo, expressa nas práticas filosóficas e musicais da sociedade Gãyan Uttejak.
“Todas as culturas tradicionais que são estranhas à tecnologia ocidental”, diz Hortobagyi, “estão condenadas à extinção.” O paradoxo, que se confunde com a própria essência da arte total deste húngaro visionário, é o mesmo que, em termos civilizacionais, se traduz na exclusão das tradições ancestrais da macrocélula pancultural, dominada pela informação, na qual, a curto prazo, se transformará o planeta Terra. A pluralidade exclui a diversidade. Ou transforma-a em modelos de consumo, imagens cutâneas de movimentos da alma e do mundo que se perderam.
Lászlo Hortobagyi devolve-nos o Apocalipse sob a forma de entretenimento, mas também de uma ironia cerrada a par de uma genuína manutenção das fórmulas tradicionais. O seu trabalho é o da preservação através da ocultação e da deformação. Subversão estética de características absolutamente idênticas Às do método paranóico-crítico seguido por Salvador Dali. Nesta medida, Lászlo Hortobagyi é um surrealista de pleno direito (não estão lá por acaso as tais pinturas ernstianas...) e toda a sua obra é uma emanação sistematizada do inconsciente.

A “6th All-India Music Conference” (8), que constitui o álbum seguinte, de 1995, nos seus híbridos – agora de conteúdo já plenamente perceptível a partir de títulos como “Russian chakra” ou “Ragamelan” –, avança um novo passo nessa renovada sistematização do realismo fantástico. Trata-se, desta feita, de uma selecção de temas de “música indo-europeia”, seleccionadas da sexta de uma série de apresentações ao vivo de música clássica indiana. Como seria de esperar, o disco foi inteiramente gravado nos estúdios Ayan Uttejak, soando a tudo menos a música indiana e saindo reforçada a componente electrónica. Klaus Schulze leu Rabindranath Tagore sob os efeitos de LSD ao som e uma ópera de Verdi.

“Terra Dei” (7), quinta estação dos Anais, sugere, na apresentação, um disco de música antiga, mas é o seu oposto, genuína etnotecno do fim dos tempos, ainda uma alucinação cuidadosamente contextualizada, no âmbito de uma incursão psíquica sem precedentes na música popular deste século. Música da luz, música da Idade das Trevas, “Terra Dei” mergulha-nos na dúvida, fazendo tábua-rasa das nossas percepções e deitando por terra todas as ideologias. Fuga e transcendência. “Hemis – mela” é uma “cerimónia de cogumelos dos seres de Zeta Reticulum” e os quinze minutos finais de dança de baixas frequências cerimoniais de “Trance macabre” avançam através de vozes sintonizadas na miragem de um “acid choral”.
“Terra Dei”, para dançar nas pistas dos piores pesadelos tecnológicos, converte a lógica dos Enigma no contexto do sagrado. É o álbum de um falso deus criado pelo homem e, nesta perspectiva, um deus para quem “a coisa mais maravilhosa é a destruição, e a arte dessa destruição. Uma arte sinónimo de alienação da espécie humana e da sua consciência postiça condicionada artificialmente”. Por isso, acrescenta Hortobagyi, a música de “Terra Dei”, “apesar de pretender ser um êxodo espiritual de um mundo que se tornou inabitável”, é também “uma reflexão cheia de esperança” sobre esse mesmo mundo, um “mundo que já não é igual ao originalmente criado mas um mundo esmagado”.
Lászlo Hortobagyi aconselha a perdermo-nos e a encontrarmo-nos “na ficção e na realidade”. O difícil é sair de lá.

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