05/09/2009

Poemas com adrenalina [Anabela Duarte]

Sons

28 de Fevereiro 1998

Anabela Duarte lança disco de poesia

Poemas com adrenalina

Poesia mais música era a fórmula utilizada por Os Poetas em “Entre Nós e as Palavras”. Poesia e voz chegaram para fazer “O Horizonte Basta”, um livro e um disco em que a voz de Anabela Duarte reinventa as palavras dos poetas Paulo da Costa Domingos e Hélder Moura Pereira.

É um objecto singelo. Um livro pequeno, em edição bilingue (português e inglês), com os poemas de Paulo da Costa Domingos e Hélder Moura Pereira impressos, serve de embalagem a um CD com esses mesmos poemas ditos/cantados/transformados pela voz de Anabela Duarte, para quem ainda se lembra, a antiga cantora do grupo pop Mler Ife Dada. Chama-se “O Horizonte Basta”, saiu com o selo Frenesi e reproduz, em condições técnicas não muito famosas, um espectáculo ao vivo realizado em 1991, por altura do décimo aniversário daquela editora.
“Este disco reproduz um desses recitais, com uma peça onde a Anabela encontrou na nossa obra pontos de contacto ou, pelo menos, pontos onde o significado que ela acrescenta pela voz ao texto nos aproxima”, explica Paulo da Costa Domingos, poeta (autor de “Carmina” e “Vaga”, estando para breve a publicação de “Campo de Tílias”) e editor da Frenesi, um selo que muito em breve passará também a editar álbuns de música. “O som é muito rudimentar, de ‘bootleg’, mas foi assumido assim mesmo, como um arquivo de uma casa editora. A mim não me choca. Os próprios Sonic Youth já gravaram um disco pelo telefone, dos Estados Unidos para Barcelona.”
Em “O Horizonte Basta” a única máquina a servir de suporte à voz de Anabela Duarte é um módulo de reverberação, adicionando à leitura/canto, por vezes, efeitos de “delay”. “O resto é tudo acústico”, garante a cantora, para quem “a palavra discursiva não interessa”. “Este disco é um exemplo flagrante disso mesmo, uma espécie de antidiscurso. Ao fim e ao cabo isto é uma abordagem lírica da palavra, uma dimensão canora e fonética.”
A publicação, escrita, dos poemas, aparece “para a pessoa que ouve o disco poder confrontar o texto donde ela partiu com o trabalho de criação que ela teve”, acrescenta Paulo da Costa Domingos, que destaca o facto de, no modo como Anabela Duarte diz os poemas, “haver uma ruptura com a dicção teatral, em que se tenta seguir escrupulosamente a palavra, acrescentando-lhe uma ênfase que acaba por trair o poema”.
Para o poeta há neste exercício poético-fonético de Anabela Duarte uma “revitalização”, colocando o poema “num plano de sentido diferente mas que não traiu aquilo que é a palavra escrita, que, na essência, cumpre uma função silenciosa com o leitor – leitor que na interpretação da Anabela é muito mais esmagado por um clima que o trespassa”.
“Tanto eu como o Hélder Moura Pereira, que além de poeta [publicou, entre outras obras, “A Última Lua da Lua de Outono”, “Em Cima do Acontecimento” e “Nem por Sombras”] também escreve sobre música, estando ligado às novas experiências de vanguarda, não nos sentimos chocados, até porque qualquer um de nós não pertence àquela geração que se choca quando ouve os seus poemas ditos. Nós estamos no pólo oposto.” Para Paulo da Costa Domingos apenas há poemas indizíveis “porque a poesia portuguesa está viciada por uma leitura académica e por uma produção académica”. “Hoje a maior parte da poesia portuguesa é produzida por professores, não é produzida por indivíduos do quotidiano. Não temos uma tradição de oralidade como têm os americanos ou os alemães. Se houvesse essa tradição, a própria natureza, o momento da história da poesia portuguesa seria hoje forçosamente diferente, teria um timbre e uma sonoridade diferente e não haveria tantos desses poemas ‘indizíveis’.”
O trabalho de Anabela Duarte em “O Horizonte Basta” poderia evocar experiências paralelas, e levadas a cabo com outros meios, de artistas como Anne Clark ou Anna Holmer. A cantora que em 1988 gravou a solo o álbum “Lishbunah”, embora admita gostar da obra da primeira, distancia-se dela: “Tem um suporte musical, cantando quase em voz ‘off’, o meu trabalho é mais vocal, dimensão que ela não possui.”
“Entre Nós e as Palavras”, o álbum de poesia musicada lançado o ano passado por Os Poetas, “pelo apoio e sucesso que teve, abriu, de facto, as portas a outros projectos deste género”, reconhece Paulo Costa Domingos. Todavia, em sua opinião esse até nem terá sido o disco mais vendido nessa área específica: “Tanto quanto ouvi dizer, o disco que vendeu mais depressa foi o do Sinde Filipe a dizer Fernando Pessoa.”
Poesia dita. Numa altura em que se lê cada vez menos, a edição de discos de poesia não terá o efeito perverso de aumentar ainda mais essa passividade? “Talvez isso aconteça nos tais casos em que há uma dicção teatral que oferece certas facilidades. Não é preciso ler o livro, basta ouvir o actor a dizer. Mas quando se vai a um supermercado e se compra um disco da Diamanda Galas, não se tem facilidades nenhumas mas sim o confronto com uma agressividade. É uma opção estética. É isso que me interessa, algo que possa, não especificamente agredir o ouvinte, como é o caso de Diamanda Galas, mas que possa inquietá-lo, tirá-lo de uma certa letargia no sofá”.
“O Horizonte Basta” de certeza que não é para se ouvir no sofá. “É uma grande descarga de adrenalina”, garante Anabela Duarte.

Discografia de Anabela
Anabela Duarte pode ser ouvida com os Mler Ife Dada nos álbuns desta banda “As Coisas que Fascinam” e “Espírito Invisível” e no maxi-single “Coração Antibomba” e, a solo, no álbum “Lishbunah” e no maxi-single “Subtilmente”.

Sem comentários: