20/05/2010

De noite, na igreja [Maria Ana Bobone]

Sons

29 de Janeiro 1999

Maria Ana Bobone lança “Senhora da Lapa”

De noite, na igreja


Em “Luz Destino”, Maria Ana Bobone fazia flutuar a sua voz entre o cravo e as entoações barrocas de João Paulo Esteves da Silva e a guitarra portuguesa de Ricardo Rocha, na nave de uma igreja abandonada. Os três voltaram ao mesmo local, trocaram de posições e o resultado é “Senhora da Lapa”, verdadeiramente o álbum de estreia da cantora. Clássico, ideal para meditar, assombrado pelos ecos da noite.


Maria Ana Bobone vem do fado, sente como enraizadamente portuguesa a música que canta e não esconde o desejo de, um dia, gravar um disco inteiro com reportório clássico. “Senhora da Lapa”, editado com o selo M.A. (uma espécie de variante, mais romântica, da ECM), leva mais longe o gosto pelo intimismo e pela religiosidade que já despontava em “Luz Destino”. A par da voz, brilham as palavras de Fernando Pessoa e de Sebastião da Gama. O PÚBLICO conversou com a cantora.

PÚBLICO – Em “Senhora da Lapa” os intervenientes são os mesmos, mas a hierarquia mudou...
MARIA ANA BOBONE – Resolvemos, desta vez, fazer um disco meu. Era suposto ser um disco de “lullabies” [canções de embalar], mas acabaram por ir surgindo outras músicas diferentes. Tudo isto porque o Tod [director da editora] achava que a minha voz era a ideal para cantar esse tipo de canções. Podia ter alguma graça fazer um disco desses... Mesmo assim há algumas semelhanças em canções como “Jesus embala o Menino” e “Luar”, que parece uma música infantil e depois se complica, à maneira do seu autor, o João Paulo...
P. – Está a cantar cada vez mais próximo de um certo registo clássico...
R. – Se tivesse de catalogar o meu estilo era, sem dúvida, mais para o clássico, embora entre aspas, entre muitas aspas...
P. – O fado ficou definitivamente para trás?
R. – Acho que não. A música deste disco é muito portuguesa, tem algumas raízes no fado. Mas é verdade que quis sempre explorar outros caminhos. As canções deste disco não são, de todo, fados, mas sinto nelas essa portugalidade. Deve lá haver qualquer coisa na estrutura...
P. – A quem se deve a escolha dos poemas, entre os quais sobressaem dois de Sebastião da Gama, incluindo as duas versões do título-tema?
R. – Andámos, o João Paulo e eu, a vasculhar em alguma material que ele já tinha feito. “Senhora da Lapa” foi feita de propósito para o disco, assim como o outro poema de Sebastião da Gama, usado em “ABC”.
P. – Sentiu particular prazer em cantar algum dos poetas que aparecem no disco?
R. – Talvez o Fernando Pessoa, em “Flux”, bem como a Maria Pimentel Montenegro, em “Dos teus olhos”.
P. – Como se processou a transição de uma posição secundária, em “Luz Destino”, para o protagonismo de “Senhora da Lapa”?
R. – O outro disco não era um disco meu! Eles já tinham feito o disco todo e chamaram-me à última hora para cantar. Fui apenas mais um instrumento. Neste disco, pelo contrário, foi tudo moldado a mim. Eles compuseram e tocaram para mim. Daí as tais canções de embalar que eles também achavam muito apropriadas para a minha voz.
P. – Quer dizer que, pelo menos nesta primeira fase da sua carreira, ainda não detém o controle sobre a orientação estética a seguir?
R. – Não tenho muito, não! Se fosse eu a escolher exactamente o que queria, seria eu sozinha a fazer o disco! Não tenho controle no sentido em que respeito as personalidades e opções dos outros músicos. É um bocado: ‘Olhem, eu sou isto, o que é que queres, o braço, a perna, o joelho ou o pé?’. Posso perfeitamente não escolher o pé!... Quer dizer que não canto tudo o que me puseram à frente. Aliás havia, à partida, algumas canções com que não me identificava. Daí que o disco tivesse demorado algum tempo a sair [um ano e meio]. Porque quis acrescentar-lhe mais duas ou três músicas mais mexidas: “Hortelã-mourisca”, “Ternura” e “Espelho quebrado”, que é um fado. Achava o alinhamento original todo muito igual, lento, embora, claro, este não seja um disco para dançar, mas, pelo contrário, um convite à reflexão, à interiorização.
P. – A presença, no disco, de um saxofonista, Peter Epstein, não deixa de fazer lembrar outra colaboração, muito antiga, entre uma fadista e um saxofonista: Amália Rodrigues e Don Byas...
R. – É mera coincidência. O saxofonista aparece porque já tinha gravado com o João Paulo num disco dele, instrumental, chamado “Mergulho”. O Tod Garfinkle, da editora, resolveu misturar no meu disco o saxofone, até porque o Peter já manifestara antes o seu apreço pela minha música. Adaptou-se lindamente ao “feeling” do disco.
P. – Prefere ouvir-se a si própria a cantar fado, acompanhada por guitarras e violas, ou neste tipo de reportório, acompanhada por piano?
R. – Ouço-me a mim própria de uma maneira que só eu conheço. Ninguém mais sabe. Sinto-me bem das duas maneiras. Mas, muito mais do que de uma casa de fados, gosto do ambiente de uma igreja, como aquela onde gravei este disco, onde as condições acústicas são fabulosas.
P. – Em que altura e em que condições é que foi gravado o álbum?
R. – Foi espectacular! Já com o “Luz Destino” senti a mesma sensação, de estar numa igreja grande e vazia, à noite, à uma da manhã, com tudo fechado, silêncio lá fora, só com umas luzinhas acesas. Eu cantava mesmo de frente para o altar, com o gravador em cima do altar. É uma sensação única, poder cantar à vontade, soltar tudo! Fabuloso!
P. – Ainda canta em casas de fado?
R. – Nunca cantei, por sistema, em casas de fado. Tenho algumas saudades, mas a verdade é que o meu actual estilo de vida – tenho aulas de canto de manhã e dou aulas de música, à tarde, num colégio particular – não mo permite. Com o tempo que me sobra, trato da minha carreira.
P. – Emancipou-se, então, em definitivo, do grupo de fadistas de que fazia parte com outros jovens fadistas, o Alma Nova?
R. – Isso já é, completamente, história. Claro que, se o João Braga me convidar para um espectáculo, eu vou com todo o gosto e alinho. Eu já gravei, já fiz, já andei mais do que os outros, mas há sempre uma relação.
P. – O contrato com a M.A. prevê a edição de mais discos?
R. – Vou dizer uma coisa fantástica: não existe nenhum contrato! [Risos.] É tudo feito na base da boa-fé. O Tod gosta da minha música, a editora paga-nos, tem sido tudo impecável. Nunca vi isto em mais lado nenhum. E não há exclusividade. A qualquer momento posso decidir outra coisa qualquer. É um bom recado para as editoras. Acho que é a maneira mais honesta de trabalhar. Se não estiver satisfeita, ou a editora não estiver satisfeita, acabamos a ligação. O que obriga ambas as partes e esforçarem-se para se aproximarem.
P. – Já pensou alguma vez em gravar um disco só com reportório clássico?
R. – Sim, já me passou pela cabeça. Mas ainda não estou preparada, nem conheço reportório suficiente. Era mais por achar graça, não como estilo de vida. Tenho uma personalidade um bocado instável. Gosto de fazer várias coisas, de não me prender a uma só.

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