07/11/2011

O muro reconstruído [Pink Floyd]

31 de Março 2000

“The Wall” em CD e DVD

O muro reconstruído

Por mais que as duas Alemanhas se unifiquem, por mais que a guerra fria tenha acabado, por mais que os alunos batam nos professores, o muro dos Pink Floyd não vai abaixo. Foi construído pela primeira vez em 1979 por Roger Waters, que, em matéria de paranóia, não fica atrás de Syd Barrett, com a diferença de ter jeito para pedreiro. Vinte anos depois o muro continua sólido, como o provam a edição do espectáculo ao vivo de “The Wall” e o lançamento do filme de Alan Parker em DVD.

Foi a resposta dos Pink Floyd ao punk. A vingança do novo-riquismo contra a penúria de meios, a vitória do artifício sobre a realidade nua e crua. “The Wall”, dos Pink Floyd, é um monstro na verdadeira acepção do termo, uma ideia megalómana de um músico dilacerado posta em prática por um grupo que nasceu das alucinações do psicadelismo e acabou a mamar nas tetas da indústria.

Apesar de tudo isto, do exagero, dos gritos e da despesa em tijolos, “The Wall”, o álbum original de estúdio, de 1979, dos Pink Floyd é uma das obras-chave do final dessa década. O testemunho individual de um músico cercado pelos seus fantasmas em pleno domínio do grupo, um pouco como “The Lamb Lies down on Brodway” representou em relação a Peter Gabriel e aos Genesis.

Mas não era suficiente. Não foi suficiente. Em breve esta fantasia sobre a prisão que quase todos vamos construindo para nós próprios ao longo da vida se transformou em espectáculo de circo. Em arenas pejadas de multidões histéricas, ávidas de verem porcos insuflados voar sobre as suas cabeças e de assistirem ao desmoronamento real de um muro verdadeiro construído laboriosamente ao longo de mais de duas horas de um espectáculo que obedecia mais ás regras da ópera do que do concerto pop convencional.

Mãe querida

A presente reedição de “The Wall”, reintitulado “Is there anybody out there? The Wall live”, com distribuiçao EMI-VC, reproduz alguns dos concertos incluídos na digressão mundial realizada entre 1980 e 1981 constituindo nova oportunidade para a miudagem de todo o mundo gritar “Ei, professores, deixem os putos em paz!” e os adultos exorcizarem alguns dos seus traumas, sobretudo em relação às mães gordas que os estrangulavam com muitos beijinhos, chocolates e avisos sobre a ameaça que constitui a existência de todas as outras mulheres para os seus queridos filhinhos. No filme de Parker eram exemplarmente representadas pelo trabalho de animação de Gerald Scarfe com flores-vaginas canibais.

Roger Waters passou por uma série desses traumas. “The Wall” é, pois, o seu testemunho autobiográfico. É a história da ascendência e queda, da alienação e, finalmente, do julgamento da personagem Pink (alter ego de Waters), uma estrela de rock afundada nos seus próprios medos e contradições. Uma obra amarga, sobre a impotência e o jugo exercido pelo poder sobre o indivíduo, desde o berço até à morte, passando pela família e pela escola. A mãe (a figura do pai está ausente da trama, o de Roger Waters foi morto durante a II Grande Guerra), os professores, as namoradas, os juízes são todos personagens sinistras cuja única finalidade é acusar-nos pelo simples facto de estarmos vivos. Perante este ataque concertado restam aos indivíduos duas hipóteses: ou se rende e se deixa esmagar pela engrenagem, ou junta-se aos esquadrões da morte, passando ele próprio de vítima a carrasco. É esta a opção do herói do filme. Mas, seja qual for a escolha, o resultado é o mesmo: a solidão, a prisão, o muro, cada vez mais alto e sólido, a abraçar-nos com os seus braços de cimento, como a tal mãe gorda que dava beijinhos e chocolates. Resta a fuga e esta é a loucura. “Crazy, crazy, over the rainbow, I am crazy” canta Roger Waters na faixa do julgamento, “The trial”, uma das mais belas e pungentes de “The Wall”. Syd Barrett já o tinha percebido antes, assinando a sua rendição logo no início de carreira dos Pink Floyd. Roger Waters teve a vantagem de poder levantar voo no helicóptero da razão e sobrevoar a sua própria paranóia, assistindo de cima ao espectáculo da demência. Reconheça-se-lhe a força e o engenho para, pelo menos durante duas horas de catarse, domar a fera, aprisionando-a na redoma do “show business”.

“Show” de insufláveis

Também é verdade que a partir daí ele e os Pink Floyd se transformaram em sombras, em ecos, em fragmentos estilhaçados desse momento irrepetível em que, como aconteceu frequentemente ao longo da História, a loucura se converteu em arte. Hoje, os Floyd já nem sequer se importarão em verificar se estão dentro ou fora do muro. Mantêm-se como invólucros vazios (na capa de “Is there anybody out there? – The Wall live” os rostos dos quarto músicos são mostrados como máscaras…), reciclando velhos fantasmas em cerimónias de luxo. O muro está, pois, mas sólido do que nunca.

“Is there anybody out there” é, em conformidade, um objecto apelativo, envolto em imagens e memórias. Além dos dois CD, arrumados em caixa, esta primeira reedição (limitada) inclui um livro profusamente ilustrado, com dados detalhados sobre o espectáculo, inclusive várias plantas dos recintos e, claro, imensas fotos da bonecada (reproduzida a partir das imagens animadas de Gerald Scarfe criadas para o filme de Alan Parker), insufláveis e marionetas: a mãe, o professor, o juiz, o porco…

Em simultâneo com a edição do CD duplo, “The Wall” ressurge igualmente na forma de uma versão em DVD, editada pela Sony Música, do filme realizado em 1982 por Alan Parker. Ao contrário do álbum de estúdio, mais metafísico, o filme segue as pisadas da estrela de rock protagonizada por Bob Geldof, ficando o lado onírico representado sobretudo pelo espectacular trabalho de animação de Gerald Scarfe. O DVD, com som remasterizado e imagem melhorada para alta definição, inclui material de filmagens inédito, um “making of” de 25 minutos e um documentário de 45 minutos com entrevistas a Roger Waters, Gerald Scarfe e Alan Parker, entre outros. Menus interactivos e a possibilidade de seleccionar cenas e canções constituem atractivos adicionais do presente formato de “The Wall”, uma das obras mais amadas e odiadas do rock.

Sem comentários: