07/11/2011

O som do fumo do cigarro [Einsturzende Neubauten]

Sons

31 de Março 2000

Blixa Bargeld fala do novo álbum dos Einsturzende Neubauten

O som do fumo do cigarro

Os edifícios novos ruíram. A pop está em agonia. Mas os Einsturzende Neubauten continuam imperturbáveis a sua saga de perversão, arrancando-nos ao conforto da poltrona. Já não batem em pontes nem destroem os palcos que pisam, mas as canções do seu novo álbum, “Silence Is Sexy”, são de uma calma assassina. A arte de pôr buracos na música, entre duas passas de cigarro.

Com um gorro russo enfiado na cabeça e uma vista panorâmica sobre Lisboa, Blixa Bargeld, vocalista do grupo alemão Einsturzende Neubauten (Novos Edifícios em Colapso), falou ao PÚBLICO não só do novo álbum, “Silence Is Sexy”, como de alquimia da arte de fazer buracos na música e da sua participação, como gritador, no filme “A Múmia”. A entrevista teve lugar no último andar do Hotel Sheraton. Os alicerces tremeram, mas o hotel não foi abaixo.
PÚBLICO – No início dos anos 80 deram cabo da música pop e rock. Sobrou alguma coisa das ruínas?
BLIXA BARGELD – Confesso que deixei de prestar atenção à música que se faz, há cerca de dez anos a esta parte. A minha editora mostrou-me recentemente um CD dos Pole que achei muito engraçado, feito a partir dos ruídos de um disco riscado.
P. – Alguma vez sentiu que os Einsturzende Neubauten (EN) tivessem feito parte daquilo que no início dos anos 80 se chamou “música industrial”?
R. – Não. Os meus primeiros discos foram um álbum dos Pink Floyd e “Monster Movie”, dos Can. Também ouvia os Kraftwerk (o primeiro álbum é um clássico, assim como “Ralf and Florian”), Cluster, Harmonia e sobretudo os Neu!, cujos dois primeiros álbuns continuo a considerar obras-primas. É este o meu “background”. O punk não me disse nada. Musicalmente não tinha grande valor. Foi importante, sobretudo o impacte social que causou, ao nível da criação de editoras e canais e distribuição independentes. Quanto à música industrial, foi um termo inventado por Peter Christopherson e Genesis P. Orridge, dos TG, através da editora deles, a Industrial Records.
P. – Existe alguma correspondência entre a evolução dos Throbbing Gristle para os Psychic TV e dos velhos Einsturzende Neubauten para os novos? Em qualquer dos casos a palavra “inversão” parece ser a chave…
R. – Sim, “inversão” é um termo apropriado. O novo álbum, mais do que qualquer dos anteriores, tem mais a ver com canções, mas não encontramos nele nenhuma com uma estrutura convencional. São todas desconstruídas a partir do interior. O objectivo do grupo foi sempre a criação de “peças”, sejam elas orgias de ruído ou paisagens sonoras.
P. – Os primeiros álbuns do grupo retratavam uma realidade concreta, de forma brutal. “Silence Is Sexy” aborda níveis mais subtis e menos evidentes dessa mesma realidade, como o sonho, que os EN injectam com medo, com beleza e com veneno. Concorda?
R. – Sim. Iria mesmo mais longe. Os primeiros álbuns não retratam a realidade – não há neles nada mais senão a realidade. O que eu procurava era autenticidade, furtar-me ao preconceito anglo-americano sobre como produzir música. Foi uma época de exploração, para o grupo, de novos materiais e objectos, que atingiu o auge em “Zeichnungen des Patienten OT”. Já não havia sequer uma bateria convencional, só metal.
P. – Objectos que incluíram uma ponte. Em “Silence Is Sexy”, em vez de objectos de grandes dimensões, gravaram o som de um cigarro a ser fumado…
R. – Sim, a música tornou-se uma filigrana. Há dois novos membros, Jochen Arbeit e Rudi Moser, e o Alexander toca agora sobretudo guitarra baixo. E o modo como Rudi toca percussões é diferente em 180 graus de como FM Einheit, que saiu, o fazia. FM Einheit tocava de uma maneira maciça. Acabou por se cansar por altura de “Ende Neu”… Foi uma boa altura para sair, a música estava a tornar-se demasiado previsível. Para um grupo como o nosso isso é letal. Temos que ter sempre à nossa frente um problema para o qual possamos arranjar uma solução. Agora ouvimo-nos melhor uns aos outros e eu tenho mais espaço para cantar. Antes dava cabo das cordas vocais para me fazer ouvir, tinha que gritar…

Buracos

P. – É verdade que o tema “Silence Is Sexy” se inspirou na faixa de silêncio de John Cage, “4.33”?
R. – No álbum “Tabula Rasa” há já uma parte em que eu grito: “Silêncio!” Na versão original dizia “Silence, 4m33, J. C. is dead” e só então a canção começava. O tema de Cage tinha a ver com uma atitude zen, alguém que toca piano mas não está na realidade a tocar piano, o que obriga a escutar tudo o que está em volta. O tema “Silence is sexy” parte de um “erro”. Ao fim de uma série de gravações acabei por perceber que afinal o silêncio não é “sexy”! É sobre o silêncio da ausência, da perda, de um estado de tensão inerente ao próprio silêncio. O “som” do cigarro a ser fumado, ou melhor, o silêncio entre duas passas de cigarro, serviu para estruturar o tempo. Tornou audível essa tensão. Sente-se a existência de algo sem que se possa ouvir esse algo.
P. – Pode entender-se a comparação com Cage também na medida em que “Silence is sexy” é sobre uma nova maneira de perceber o som, logo, uma nova maneira de ouvir música?
R. – Espero bem que sim! O jogo que gostamos de jogar é o de pôr buracos na música, de perfurar o ruído. Já o tínhamos feito antes, com sucesso, num tema de “Halber Mensch”, “Seele brennt”, que pode ser considerado uma espécie de tema gémeo de “Silence is sexy”.
P. – Também poderia ser um filme de Cronenberg sobre os jogos entre a realidade e ilusão…
R. – Gosto dos filmes de Cronenberg. Não gostei de “Crash” mas “Videodrome” atingiu-me em cheio! David Cronenberg disse uma vez que fazia filmes de terror porque era o único género cinematográfico que toca directamente em categorias filosóficas como a vida, a morte e a existência.

A múmia e o pelicano


P. – No tema de abertura, “Sabrina (I wish this would be your colour)”, a referência a uma sequência de cores faz pensar nas várias fases da obra alquímica onde radica, precisamente, a essência de toda a transformação…
R. – Eu também pensaria o mesmo… não que seja exactamente a pedra filosofal dos alquimistas mas… É verdade que através de cada disco procuro transformar-me numa pessoa diferente da que era antes. Através do pensamento, da aprendizagem e da experiência. Há um elemento ritual, xamanístico, a percepção de uma qualidade diferente do tempo. Os concertos funcionam da mesma maneira. Sempre que subo a um palco, integro-me numa dimensão diferente do tempo que não tem nada a ver com o tempo ordinário do antes e depois do concerto. “Silence Is Sexy” é um sistema complexo de referências com diferentes conotações. Mas ao mesmo tempo, à superfície, soa acessível e agradável… O que acaba por torná-lo no disco mais hermético que alguma vez fizemos.
P. – Por falar em “hermético” e insistindo no tema da alquimia. O último e mais longo tema do álbum é “Pelikanol”. A propósito dele falam da cola que as crianças usam na escola. É inevitável pensar no pelicano, um dos animais que os alquimistas usavam como símbolo para uma das suas operações…
R. – Acertou em cheio! O pelicano alimenta as crias com o seu próprio sangue. Toda a gente na banda sente uma afinidade com este tema. Resolvemos não fazer qualquer alteração na versão de base. Deixámos ficar como estava, com os seus 18 minutos de duração.
P. – Na parte final do tema, grita como uma criança a ser torturada…
R. – Sabia que sou o responsável por todos os gritos e ruídos do monstro e dos vários espectros do filme “A Múmia”? Contrataram-me para fazer tudo o que fossem gritos inumanos. [“A Múmia” foi nomeada para o Óscar de Melhor Som]. Devia ser criada uma categoria nova para o “melhor gritador”, como a Fay Wray, que foi considerada a melhor “gritadora” de Hollywood, em “King Kong” [risos]!

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