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21|JUNHO|2002
música|pop
dell’arte
A perturbação, nos sons e imagens, atravessa “So Goodnight”,
que o grupo apresenta no Lux, 5ª feira. Vai instalar-se a hipnose subliminar e
ninguém terá vontade de ir dormir.
pop dell’
expressionismo-existencialista
Adeus. Boa-Noite. “Say hello and wave
goodbye”, cantava Marc Almond, dos Soft Cell, como João Peste um boneco nas
mãos dos génios e da decadência. Ou dos génios da decadência. Como os Soft
Cell, como os Coil, como o Scott Walker de “Tilt” (por quem Peste nutre uma
“paixão assolapada”), os conceitos de “pop” e de “arte” são indistrinçáveis. O
infinito e o efémero em ascensão e queda. A pop da arte. Disse-o, primeiro que
todos, Andy Warhol, cuja presença serve de embalagem conceptual a “So
Goodnight”. Pop Dell’Arte. Isto ou algo mais, logo se verá, no concerto que o
grupo dará na 5ª feira, dia 27, no Lux, na companhia do projeto Wordsong.
Há
quem se tenha escandalizado e classificado de “mau gosto” as fotografias da
capa de “So Goodnight” – uma sequência de imagens/fotogramas de uma criança
refugiada, legendadas com as cores “laranja”, “encarnado”, “magenta” e
“amarelo”. O grafismo do CD acentua o que se poderá ler como uma
disformidade-choque das “United Colors of Benetton”. João Peste defende que o
trabalho gráfico, da sua responsabilidade, é um dos aspetos mais conseguidos do
disco. E cita Warhol e a sua “série de quadros a partir de fotografias de
desastres, da cadeira elétrica, imagens muito fortes, transpostas para a
linguagem da pop arte, o que criava uma dinâmica incómoda, com algo de chocante
apresentado de forma estetizada, a provocar nas pessoas um sentimento
contraditório".
“Os
Pop Dell’Arte” – diz este admirador incondicional da trilogia de Berlim de
David Bowie, dos Kraftwerk, de “I feel love” de Donna Summer, de Amanda Lear e
de “Romance 76”, primeiro disco a solo de Peter Baumann, ex-Tangerine Dream –
“tentam fazer a síntese de opostos”.
“A
capa perturbou algumas pessoas”, acrescenta José Pedro Moura, responsável pelas
manipulações eletrónicas do grupo. “Dizem que é de mau-gosto, mas não conseguem
exolicar porquê... não tentam perceber”. Peste dá uma ajuda: “a ideia dessa
sequência de imagens, segundo o tal conceito de ‘série’ do Warhol, é fazer um
painel, sugerir uma cadeia de montagem ‘ad infinitum’...”. O choque e a
ambiguidade estão garantidos. “Já estamos habituados. Se em relação à música
parece que as pessoas têm medo de deizer bem ou mal, já as capas têm provocado
reações e aversões fortes, como aquela imagem do Cristo que usámos em 1989 no
‘Illogik Plastik’ em conjunto com fotos de revistas pornográficas. Chegou-se ao
ponto desse álbum não chegar às montras e de na Rádio Renascença o gajo que
passava aquilo levar o disco sem a capa”. Neste aspeto, “So Goodnight” tem tudo
para descobrir a careca aos tabus e despoletar as reações mais irracionais.
arte
e terrorismo. Mas quando a música diz “então, boa-noite”, instala-se
uma espécie de hipnose subliminar e ninguém tem vontade de ir para a cama
dormir. São seis temas de vinte e poucos minutos que, de perspetiva oblíqua,
evocam o transe dos Can, o luar digital dos Coil e o crooning da “5º dimensão”
de Scott Walker, em “Tilt”, como “So Goodnight” um álbum ensombrado pelo “não
dito” e pelo mistério.
“So
Goodnight” fecha um ciclo de vida dos Pop Dell’Arte encetado em 1999 e
concluído em 2001 mas o som minimalista e eletrónico que o caracteriza
transitará para o próximo álbum, a gravar ainda este ano ou no próximo. E
depois do grupo ter contribuído, já este ano, com um tema para a coletânea “Indiegente”.
Calmo à superfície, “So Goodnight” esconde monstros, espectros e vermes no seu
venre de besta aparentemente domesticada. Não tranquiliza, aterroriza, mas num
murmúrio gélido de conto infantil que acaba ao contrário, com a vitória das
bruxas e dos dragões.
Os
Pop Dell’Arte são terroristas não tão suaves como isso. Comentando a recente e
polémica declaração de Karlheinz Stockausen sobre o atentado do 11 de Setembro,
definindo-o como “a mais bela obra-de-arte deste século”, João Peste, fazendo
sempre questão de afirmar que está contra toda a espécie de violência e o
assassínio (“nem de animais, quanto mais de seres humanos”), estabelece
conexões para vias divergentes de pensamento não politicamente correto.
“É
uma frase que dá pano para mangas... há outra, de Bernard Crick, na sua obra
‘In Defence of Politics’ que diz que ‘o amor e a política são as duas únicas
formas de constrangimento para os homens livres’. Os Pop Dell’Arte estiveram
para fazer um cartaz que contrapunha: ‘A arte e o terrorismo são as duas únicas
formas de expressão para os oprimidos”. “Mas quem são os terrosristas?”,
pergunta Peste. “Quando tinha seis anos ouvia na televisão o ministro dos
Negócios Estrangeiros falar nos terroristas de África que atacavam
Portugal...”.
Mas
de que maneira velada “So Goodnight” escorre o terror necessário para fazer
passar mensagens que preferiríamos não escutar? Um álbum tão inofensivo na
aparência, feito de programações soft e de palavras que parecem juras de amor?
São
utilizadas seis maneiras, seis temas, para nos tirar do lugar. Mas Peste,
educadamente, devolve-nos as cadeiras. “Mrs. Tyler” fala de “alguém por quem se
chama, que pode estar presente ou não. Alguém que se ama e possivelmente não se
conhece”. “So goodnight”, em que “o loop final poderia ficar a tocar até ao dia
seguinte”, é “um grito na escuridão” e “uma ironia um bocado cínica”. Quase uma
cowboy song animada por uma religiosidade difusa, “The sweetest pain” foi
escrita “em condições especiais”. Uma canção “introspetiva” sobre a “solidão” e
o facto de “acabarmos por nos habituar à dor e de ela até poder ser adocicada”.
“Pound by Pound”, barragem espessa de palavras sampladas do pr´prio poeta
maldito, tem um “lado apocalíptico que até encaixa no contexto de 11 de
Setembro. É o ‘Canto Um’, do Ezra Pound, um texto intragável, difícil de
engolir, cujo significado dificilmente se percebe, por isso o escolhemos...”.
“The witch queen of the U.S.A.”, instrumental de 55 segundos que se espeta como
uma rajada de gelo moído na espinha, tomou como ponto de partida “O Feiticeiro
de Oz”, o que o torna ainda mais assustador. A fechar, “Little drama boy”
deriva de uma “canção de Natal” embalada num sample de gaita-de-foles e no
equívoco de uma conversa telefónica que transformou o rapaz do tambor no rapaz
do drama, “drummer” em “drama”.
Como
um caleidoscópio de cores desmaiadas e formas em dissolução que se gira apenas
pelo prazer de ver, num instante, nascer e morrer os sonhos, “So Goodnight” vai
direto aos circuitos habitualmente desligados do cérebro. João Peste sorri e
insiste que nada foi pensado e que ainda não consegue ter o distanciamento
necessário para descobrir no disco as traves mestras de um sistema estético ou
filosófico. Que há coisas nele escondidas, há. “Num ‘brainstorm’ que fizemos
para o vídeo de ‘Mrs. Tyler’ descobrimos uma série de conotações
psicanalíticas...”.
Mas,
finalmente, o esteta fala mais alto: “A música dos Pop Dell’Arte tem tudo a ver
com a pintura e com o cinema, principalmente no aspeto da colagem. E, quer
queira quer não, fui marcado pelo existencialismo dos anos 60... Diria que ‘So
Goodnight’ é um disco expressionista, romântico e existencialista. Quem quiser
um rótulo, pode pôr: Expressionismo-existencialista.”
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