CULTURA
DOMINGO, 16 FEV 2003
ENSAIAR PELO
TELEFONE
Sem
a guitarra clássica de Fernando Alvim, a guitarra portuguesa de Carlos Paredes teria
sido ainda mais só. Durante 25 anos falaram uma com a outra, de muitas maneiras
Conheceram-se por causa de um programa de rádio em
1960, na antiga Emissora Nacional, iniciando então uma colaboração estreita que
duraria um quarto de século e os levaria aos quatro cantos do planeta como
embaixadores da guitarra de Portugal no mundo.
Deste
encontro entre a guitarra portuguesa de Carlos Paredes e a guitarra clássica de
Fernando Alvim, nasceria uma música sem paralelo que juntava o arrebatamento do
fado de Coimbra à complexidade formal da música clássica.
Paredes
e Alvim gravaram juntos os álbuns “Guitarra Portuguesa”, “Movimento Perpétuo”,
“Concerto em Frankfurt” e uma parte de “Espelho de Sons”. E “Verdes anos” –
ícone do sentimento nacional que Alvim define como “uma suitezinha com vários
andamentos”.
Fernando
Alvim, hoje com 64 anos, que recentemente participou como convidado num projeto
de António Chainho, apresentado ao vivo no Centro Cultural de Belém, tocava no
“Nova Onda”, um programa da antiga Emissora Nacional. “Acompanhava vários
géneros de música, bossa-nova, fado, pop, artistas como João Ferreira Rosa, Teresa
Tarouca, Hermano da Câmara, João Braga... que começaram a cantar nessa altura, por
volta de 1960. No jazz, acompanhei o Ivo Maer, Justiniano Canelhas, Jorge
Veloso... O programa durou até 1963.”
Um
dia, Carlos Paredes ouviu uma emissão. “Telefonou-me a perguntar se estava
interessado em acompanhá-lo numa música para o documentário ‘Rendas de Metais
Preciosos’, do Cândido Costa Pinto. Eu também já o conhecia de o ouvir tocar na
Emissora Nacional, com o pai, o Artur Paredes, e o acompanhamento do Arménio
Silva... Senti uma satisfação grande por saber que o Carlos Paredes queria que
o acompanhasse.”
Combinam
encontrar-se na casa de Ferreira Alves, amigo de Paredes, na presença de outro
guitarrista, João Torre do Vale. Estabelece-se de imediato uma “empatia musical”.
Paredes convida nessa altura Alvim para tocarem juntos em casa do pai, na Rua
Gomes Freire, ao Campo Santana, “a fim de começarem a trabalhar a música para o
documentário”. Poucos dias depois, ensaiam pela primeira vez. Paredes toca sozinho,
para Alvim, algumas peças do seu reportório de juventude: “Movimento perpétuo”,
“Variações em si menor”, “Variações em ré menor”, “Variações em mi menor” e as
“Danças portuguesas”, 1 e 2.
“Fiquei
fascinado”, recorda Alvim, “pois revelavam um extraordinário virtuosismo e eram
extremamente difíceis de executar.” Mas Paredes queixa-se da “falta do
complemento rítmico e harmónico”. Os dois começam a trabalhar a música para o
documentário. Esta viria a chamar-se “Fantasia” e acabaria por ser gravada na
Nacional Filmes, sendo a curta-metragem posteriormente exibida no cinema
Império, “durante os intervalos das sessões”. Nascia assim uma colaboração que
duraria 25 anos. Tocaram juntos
pela última vez em Outubro de 1993, na Aula Magna da
Universidade de Lisboa — derradeira aparição ao vivo de um Paredes já
debilitado pela doença.
“Ele
tocava-me coisas pelo telefone e eu respondia-lhe, também por telefone, tocando
as harmonias que me pareciam mais certas.
Ele
tinha ideias que apareciam subitamente, eu tentava responder...”
FERNANDO
ALVIM
Paredes
e Alvim passam a ensaiar juntos com regularidade. “Cerca de cinco a seis horas
por dia.” Quando não era possível encontrarem-se, em geral na casa de Artur Paredes,
ensaiavam pelo telefone. “Ele tocava-me coisas pelo telefone e eu respondia-lhe,
também por telefone, tocando as harmonias que me pareciam mais certas. Ele tinha
ideias que apareciam subitamente, eu tentava responder...” Posteriormente, mudam
o local de ensaios para a casa de Carlos Paredes, em Benfica.
Fernando
Alvim reconhece a dificuldade de tocar com o mestre da guitarra portuguesa.
“Foi um trabalho de muitas e muitas horas, durante anos, depois não havia
gravadores de cassete, eram ensaios directos, na base da memorização e da
digitação... Era apanhar as ‘nuances’ dele, nunca tocava da mesma maneira...”
É
conhecido o modo solitário como Carlos Paredes tocava, ao mesmo tempo livre e
encerrado no seu mundo pessoal. Como Charlie Haden, Alvim reconheceu essa solidão
irremediável. “É verdade, nós é que tínhamos que ir atrás dele e procurar apanhá-lo.”
Modesto, Alvim apenas admite poder ter tido “alguma influência” pelo modo como
também ele tocava de forma inovadora: “Tinha influências do jazz e da
bossa-nova e comecei a utilizar esses acordes nalgumas das variações do
Paredes, o que também lhe deu a entender outros tipos de harmonias e acordes.
Mas eu não estava ali a competir com ele, mas a acompanhá-lo, pura e
simplesmente. Não estava a dar respostas ou a fazer diálogos. Fascinava-me de
tal maneira a forma dele tocar que a única coisa que me apetecia era ouvi-lo.”
Fernando
Alvim está atualmente envolvido num projeto com Pedro Caldeira Cabral (ontem
mesmo deram um recital no CCB) designado “Memórias da Guitarra”, abrangendo
música da Idade Média à atualidade.
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