CULTURA
DOMINGO,
16 FEVEREIRO 2003
Uma guitarra
chamada Portugal
Carlos Paredes faz hoje 78 anos. Graças a ele a guitarra ganhou
um novo nome: Portugal. Durante um ano, o autor de “Verdes anos” será objeto de
homenagem
Carlos Paredes, o mestre da guitarra portuguesa,
nasceu em Coimbra a 16 de Fevereiro de 1925. Faz hoje 78 anos. Para comemorar o
evento, a associação Movimentos Perpétuos fez coincidir a data com o início de
um plano de actividades culturais que se estenderão ao longo do ano e das quais
fazem parte espectáculos de música, cinema, exposições, edição de livros,
catálogos e um álbum de BD e edição de um CD duplo e DVD.
Objectivo:
"Tornar acessível toda a obra de Carlos Paredes" através da
"investigação e recolha de materiais espalhados por várias
instituições", do "tratamento informático do seu espólio e restante
informação" e da "criação e manutenção de um 'site'", entre
outras iniciativas que pretendem ir além da simples homenagem.
Tudo
começará hoje à noite em Coimbra, no Jardim Escola João de Deus, a primeira
escola frequentada por Carlos Paredes, com um espectáculo onde estarão
presentes Maria João e Mário Laginha, Ana Sadio e Jorge Gomes (guitarra
portuguesa), acompanhados por André Moutinho (guitarra clássica), Marco
Figueiredo (piano) e Ricardo Rocha (guitarra portuguesa). Em peças alusivas e
dedicadas ao autor de "Espelho de Sons".
Na
agenda da associação Movimentos Perpétuos está a gravação de um CD e um DVD com
o "making of" das diversas actividades programadas para o "ano
de Paredes". Por confirmar, está outro DVD com imagens do espectáculo
"Carlos Paredes - Uma Guitarra Portuguesa", realizado por Paredes e
convidados no Teatro São Luiz, em Lisboa, em 1992. Também em preparação está a
edição de um álbum de BD alusiva ao mestre coimbrão, por dois músicos ligados
ao rock nacional: Manuel Cruz, dos Ornatos Violetas, e Adolfo Luxúria Canibal,
cérebro e voz dos Mão Morta.
Entre
as diversas personalidades que já aderiram a esta iniciativa estão dezenas de
nomes da cultura portuguesa: Álvaro Siza (arquitecto), João Abel Manta, João
Cutileiro, José Manuel Rodrigues, Lagoa Henriques, Noé Sendas e Sérgio Pereira
da Silva (artistas plásticos), Carlos Avilez, Eduardo Prado Coelho, Francisco
José Viegas, Jacinto Lucas Pires, Joaquim Benite, Jorge Silva Melo, José Luís
Peixoto, Lídia Jorge, Manuel Alegre, Mário de Carvalho, Pedro Tamen e Urbano
Tavares Rodrigues (escritores e jornalistas), Edgar Pêra, João Nuno Pinto e
Pedro Sena Nunes (realizadores), António Pinho Vargas, Carlos Bica, Gabriel
Gomes, Bullet, Gaiteiros de Lisboa, José Eduardo Rocha, Maria João e Mário
Laginha, Mísia, Ricardo Rocha, Sam the Kid (músicos) e Daniel Lima, João
Fazenda e Luís Afonso (autores de banda desenhada), entre outros.
Invenções livres
Das lições de violino e piano com que se iniciou, em
criança, na aprendizagem da música, Carlos Paredes transitou para as cordas
dedilhadas, dando espaço a uma paixão que jamais deixaria de o consumir: a
guitarra portuguesa. Com o pai, Artur Paredes, aprendeu o estilo coimbrão e a
raça desse instrumento surgido em Inglaterra mas tornado português por empatia.
"O guitarrista tem de integrar a guitarra em si mesmo, tornando-a a sua
voz... Foi com o meu pai que aprendi a tirar da guitarra sons mais violentos,
como reacção ao pieguismo a que geralmente a guitarra portuguesa estava
ligada", disse o mestre. Quem teve a felicidade de assistir aos seus
espectáculos, lembrar-se-á, estarrecido, da forma como o homem se dobrava, num
abraço sem remédio, sobre a guitarra, formando um único corpo. Integrar a
guitarra em si mesmo. Eram, de facto, um só. Carlos Paredes deu à guitarra uma
voz própria. O avô ensinara-lhe a "colocar os dedos". O resto,
"como não há nada, é inventado pelo guitarrista".
Durante
anos, Paredes deu corpo a algo de que andávamos e andamos esquecidos: a arte de
ser português. Uma natural modéstia e a indiferença generalizada das
instituições têm impedido uma maior projecção da sua música no estrangeiro.
Carlos Paredes, para quem "as coisas nunca têm uma importância de
maior", eterno exilado de si próprio, afirmou certo dia que das suas mãos
nunca poderia "sair nada de muito importante". As instâncias
oficiais, atentas como sempre, quando lhes convém, a inconfidências deste tipo,
têm-no levado à letra. Maquiavel não teria feito melhor.
Influenciado
pela música de câmara da Renascença e pelo fado de Coimbra, Carlos Paredes,
"músico popular urbano" como a si próprio se define, desenvolveu ao
longo dos anos um estilo pessoal que, com base na tradição e apoiado no vigor
de execução, ascendeu a uma portugalidade de que Amália foi a diva
incontestada. Amália e Paredes, por ironia do destino, nunca tocaram em
conjunto. Mas o contrabaixista de jazz Charlie Haden foi sensível à força e à
capacidade de improvisação do guitarrista. Tocaram e trocaram sons e ideias no
Hot Club de Lisboa, onde actuaram juntos a 27 de Setembro de 1978. Desse
diálogo ficou para a posteridade o álbum “Dialogues” (1990), um disco editado
internacionalmente no selo Elektra Nonesuch, dos mais prestigiados da música
contemporânea actual.
Da
discografia de Carlos Paredes constam as seguintes obras, todas em formato de
LP e, posteriormente, transferidos para o digital: "Guitarra
Portuguesa" (1967) "Movimento Perpétuo" (1971), "Concerto
em Frankfurt" (1983), "Invenções Livres" (com António Vitorino
de Almeida, 1986) e "Espelho de Sons" (1988). "Asas sobre o
Mundo", editado em 1989, inclui temas de "Guitarra Portuguesa" e
"Concerto em Frankfurt". Existem ainda "Carlos Paredes/Artur
Paredes" e "Carlos Paredes/José Afonso/Luiz Goes" bem como uma
colecção de EP editados ao longo das décadas de 60 e 70, entre os quais o
mítico "Verdes Anos", com data de lançamento de 1963. Em 1996, e
aproveitando o título de um documentário realizado em 1969 por Augusto Cabrita,
para o qual compôs a banda sonora, foi editado "Na Corrente",
compilação de material inédito gravado em 1969, 1971 e 1973 e, dois anos mais
tarde, a antologia "O Melhor de Carlos Paredes". “Canção para Titi”
sai em 2000, com material gravado em 1993 no qual são já visíveis os efeitos da
doença.
Danças
Carlos Paredes é ainda autor das bandas sonoras dos
filmes de Paulo Rocha, "Verdes Anos", imortalizado pela genial
composição com o mesmo nome, e "Mudar de Vida". Mais recentemente,
trabalhou com Manoel de Oliveira e José Fonseca e Costa. Colaborou com o Grupo
de Teatro de Campolide e com o Teatro Nacional D. Maria II. Dos seus trabalhos
destaca-se ainda a partitura para uma coreografia de Vasco Wellenkamp para o
Ballet Gulbenkian - "Danças para uma Guitarra" (1982).
Alain
Jomy, autor da música dos filmes "O Lugar do Morto" e "Aqui d'El
Rey" de António-Pedro Vasconcelos, realizou o documentário "Pour Don
Carlos" centrado na relação da música de Paredes com a cidade de Lisboa.
Em 1991, o guitarrista tocou ao vivo na Aula Magna ao lado dos Madredeus e, no
ano seguinte, o espectáculo "Carlos Paredes - Uma Guitarra
Portuguesa" contou com as presenças de Fernando Alvim (seu companheiro de
armas de longa data), Rui Veloso, Mário Laginha, Natália Casanova, Manuel Paulo,
Paulo Curado e Luísa Amaro, sua companheira há muitos anos.
Em
1993, foi-lhe diagnosticada uma doença do foro neurológico que progressivamente
o afastou da guitarra e lhe tolheu os movimentos. Carlos Paredes vive
actualmente numa casa de saúde em Lisboa.
"Para
defender um instrumento, a única forma possível é criar uma escola. Se as
pessoas souberem utilizá-lo convenientemente, guardam-no. Caso contrário,
esquecem-no." A frase, do próprio Paredes, aplica-se, por estranho que
pareça, à sua própria vida. Mas ainda vamos a tempo de dizer que não o
esquecemos. Parabéns, Carlos Paredes.
C o m C a r l o s P a r e d e s
José Eduardo Rocha, Sam the Kid, Gabriel Gomes e os Gaiteiros de Lisboa
são alguns dos músicos que se associaram à iniciativa promovida pela associação
Movimentos Perpétuos, compondo uma peça inspirada na música de Carlos Paredes
Paredes letra a letra
“O Carlos Paredes é como o Zeca Afonso. Para mim é
música clássica. Compus uma peça intitulada ‘Prelúdios e Fugas sobre o Nome de
Carlos Paredes’. Para dois violinos Chicco, harpa e pequeno gamelão. A peça,
não pretendendo ser um retrato musical, é uma homenagem, uma evocação musical
por dentro. Peguei no nome dele e criei uma série de notas segundo a notação
anglosaxónica e grega. Uma nota para cada uma das letras constituintes do nome
de Carlos Paredes, segundo uma prática tradicional e secreta na história da
música. Tem uma certa atmosfera, nomeadamente os sons metálicos do pequeno
gamelão que talvez evoquem o som metálico da guitarra. O uso da harpa também
vai nesse sentido, na utilização de certas técnicas de corda dedilhada.
JOSÉ EDUARDO ROCHA
COMPOSITOR E DIRETOR MUSICAL DO AGRUPAMENTO ENSEMBLE
JER
Paredes hip-hop
“Sou um rapaz ainda muito novo e não conheço em
profundidade o trabalho do Carlos Paredes. Apenas tinha comigo duas coletâneas.
Não é um artista fácil de samplar, porque não tem um compasso certo, que entre
no hip-hop. Já compus a peça mas foi muito difícil. Não fui muito fiel ao
trabalho dele. Segui o “chop style”, que consiste em separar e cortar as notas
todas para depois eu próprio as tocar e inserir num compasso hip-hop. Samplei
uma música que usa também um piano, com o António Vitorino d’Almeida, chamada
“Improviso”. Facilitou-me um bocadinho mais... Inclusive, fiz uma coisa que não
sei se me vão permitir: pus umas vozes do Carlos do Carmo por cima. Ficou bem.
Agora não sei se em termos legais me vão deixar...”
SAM THE KID
MÚSICO DE HIP-HOP
Paredes com acordeão
“A música do Paredes é uma autêntica ebulição. Um
balanço que me leva sempre numas grandes ondas. É um intérprete sublime e, na
composição, todos os acordes que faz são uma referência para mim. Estou a
agarrar num disco dele e a tirar partes de algumas músicas para, sobre essa
base, tocar acordeão. Digamos que é uma conversa entre Carlos Paredes e eu. Vou
fazer uma música de Paredes a partir de uma combinação de várias partes que,
juntas, criam outro ambiente. O que pretendo fazer com esta faixa é que alguns
elementos que identificamos de uma música e outros de outra, numa sequência
diferente, ganhem um sentido novo.”
GABRIEL GOMES
EX-SÉTIMA LEGIÃO E MENTOR DO PROJECTO “OS POETAS”
Paredes como Bach
“É curioso. Normalmente nunca se pensa muito sobre a música
dele. Está ali, existe, é um dado cultural nacional. Passados estes anos todos,
no outro dia fui “obrigado” a ouvir de novo e pela primeira vez percebi,
conscientemente, que o homem é um génio. Em termos absolutos comparável a
qualquer Bach ou a qualquer Mozart. Basta ouvi-lo com ouvidos de ouvir. É
impressionante. Mas só agora tive esta noção. É como passar todos os dias por
um monumento que se sabe que é giro e está ali e um dia olharmos mesmo para ele
e descobrirmos que é muito mais do que aquilo que vimos durante toda a vida.
Estamos a compor um tema inspirado no “Movimento perpétuo”, com um arranjo à
nossa maneira. Mas a coisa ainda está muito no princípio. Para já temos que
esperar que o José Salgueiro aprenda a tocar aquilo no xilofone.”
CARLOS GUERREIRO
ELEMENTO DOS GAITEIROS DE LISBOA
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