22 FEVEREIRO 2003
JAZZ
DISCOS
Sun Ra dirigiu a nave do “free jazz” em direção
ao cosmos. E foi no cosmos, por altura do Saturno que orbitava em torno da sua
cabeça, que assentou o seu arraial de amuletos, rituais e danças galáticas.
Sun Ra, o viajante astral
O
jazz é como o xadrez. Até certo ponto do jogo, todas as jogadas estão estudadas
e catalogadas. A partir daí, apenas os mestres conseguem inovar quando
confrontados com o desconhecido. Avançar torna-se um risco. Sun Ra foi um daqueles
músicos da história do jazz que, com alicerces na tradição, mais longe se
conseguiram afastar dela. Líder de “big band” da linhagem de Fletcher Henderson,
Sun Ra dirigiu a nave do “free jazz” em direção ao cosmos. E foi no cosmos, por
altura do Saturno que orbitava em torno da sua cabeça, que assentou o seu
arraial de amuletos, rituais e danças galácticas. Estação espacial enfeitada com
bandeirolas, altifalantes e radiações de solário, orbitando ao som de um piano
alienígena e das vibrações estelares de um sintetizador Moog.
Integrado num pacote de reedições (formato
miniatura, em cartão, da editora Byg/Actuel, com rótulo de série “Sunspots”), “The
Solar-Myth Approach”, gravação de estúdio efetuada em 1970 e 1971, surge
dividida em dois compactos — volumes 1 e 2. No primeiro volume escutamos celebrações
efusivas de um tribalismo simultaneamente arcaico e futurista, polo celeste do
mesmo eixo que fixava os Art Ensemble of Chicago à Terra, em solos de bateria a
compassar a tempestade (“Realm of lightning”), engenharia de Moog (“Seen III,
took 4”, pequena amostra do que Sun Ra faria em larga escala na gigantesca manipulação
deste instrumento eletrónico que ocupa a totalidade de um dos lados da gravação
ao vivo “Nuits de la Fondation Maeght”) e uma protocanção, “The satellites are
spinning”, algures entre o teatro de Brecht e “Nine funerals of the citizen king”,
dos Henry Cow. Lugar de destaque na cabine de pilotagem para o sax alto de
Marshall Alen e para o sax tenor de John Gilmore, velhos compinchas do “Spacemaster”
ao longo das várias personificações da Arkestra. “Adventures of Bug hunter” ilustra
a faceta cartoonesca e o lado burlesco (decerto não terá sido por acaso a
inclusão de uma imagem de Charlot na fotografia da capa) deste músico que não se
coibiu de dedicar um álbum inteiro a Walt Disney.
O segundo volume inicia-se com
“Utter nots”, uma das muitas iluminadas “aberrações” com que Sun Ra preenchia a
eternidade nas atuações ao vivo da Arkestra. Música selvagem para uns. Mística
para outros. Incompreensível na medida em que Sun Ra se regia por códigos que
escapavam à vulgar catalogação, quer em termos musicais, quer psicológicos. O
seu piano, pulsante como uma chaga aberta no firmamento, sintoniza a vibração
universal dentro do indivíduo. A Arkestra vai tão longe quanto pode e Marshall
e Gilmore (num solo com algo de Coltrane) perseguem o inevitável silêncio que
sucede ao grito, quebrando amarras, arriscando o tal lance que pode ditar a
vitória ou a derrota na partida de xadrez. Os mais ávidos de escutar o mestre a
arrancar sonoridades insólitas do Moog (mas iludam-se os que pretenderem ver em
Sun Ra o Rick Wakeman do jazz...) têm em “Scene 1, take 1” com que se deliciar,
em oito minutos de exploração dos filtros analógicos e das infinitas
combinações de cabos de conexão de circuitos do “Moog synthesizer”. “Pyramids” soa
a música barroca intergaláctica interpretada em cravo eletrónico e
“Interpretation” é um portentoso tratado de eletroacústica onde Sun Ra, o construtor
de mitos, o viajante dos espaços psico-acústicos, faz explodir “clusters”
astrais no piano, moldando e desfazendo sistemas planetários inteiros a seu
bel-prazer. “Ancient Ethiopia” evoca o lado mais étnico e ancestral do músico,
através de um diálogo de flauta e violoncelo precedendo a entrada em glória do
sax barítono, com a big band em euforia. Instante de exceção na obra deste
músico-mágico que ousou compor a banda sonora imaginária para depois do fim do
mundo. “Strange worlds” fecha a celebração da única maneira possível, com a “troupe”
a estabelecer-se numa nova terra, a respirar um novo ar. “O ar é música. Em
volta da Terra circula o estupor do ar. Necessitamos de um novo ar.” Sun Ra,
“dixit”, entre a profecia e a “blague”.
Nesta altura, mesmo o mais experimentado
jogador de xadrez sentir-se-á deslumbrado como uma criança que pela primeira
vez descobre o mundo fora de si, local de correspondências mágicas onde todas
as possibilidades se tornam reais e a potência se faz ato. “Aum”, o mantra
sagrado, funciona como detonador do Verbo. Cabe a cada um descobrir a sua
verdade, através da audição. Diz, a propósito, Sun Ra: “Não posso garantir que
esta música tenha a ver com precisão e disciplina. Da mesma forma que procuro ser
bem sucedido no modo como tento dominá-la, assim também todos aqueles que
procuram encontrar uma relação entre ela e si próprios, deverão ouvi-la sob
certas circunstâncias. Esta música é sobre o que está para além do destino.”
Como olhar de frente a luz do sol sem cegar?
Sun Ra and his Solar-Myth
Arkestra
The Solar-Myth Approach (Vols.1 &
2)
9 | 10
Sunspots, distri. Trem
Azul
Sem comentários:
Enviar um comentário