CULTURA
DOMINGO,
26 JANEIRO 2003
POP ALENTEJANA
Beja
assiste a um fenómeno inédito. Nas suas discotecas dança-se música alentejana. “As
meninas da Ribeira do Sado”, dos Adiafa, é o tema que está a fazer furor.
Nunca se viu nada assim. A música alentejana saiu do monte,
desceu à cidade e introduziu-se nas discotecas. O “escândalo” rebentou quando um
dos temas do álbum de estreia do grupo Adiafa, de Beja, “As meninas da Ribeira
do Sado”, começou a passar nas discotecas da cidade.
Passou
e pegou. Hoje torna-se difícil encontar na cidade quem não conheça o tema de cor.
Dos estudantes universitários, que nos últimos anos fizeram crescer a população
da cidade, à criançada da escola que,
para gáudio dos pais, tem na ponta da língua os versos e a melodia não só da
versão electrificada mas também da ortodoxa, em toda a pureza do “cante”, de
“As meninas da Ribeira do Sado”, que também faz parte do álbum.
Fomos
conhecer de perto a loucura do que se poderá chamar “pop à alentejana”, rótulo,
de resto, também aplicável ao álbum de estreia de outro filho da cidade, Paulo
Ribeiro, antigo elemento do grupo Anonimato. Há algo de excitante no ar. Correm
rumores de que “As meninas da Ribeira do Sado” avançaram já para Norte e estão a
agitar algumas pistas de dança de Lisboa. Rui Veloso e Vitorino expressaram já
publicamente a sua admiração pelos Adiafa.
Curiosamente
ninguém na cidade se refere a “As meninas da Ribeira do Sado” por este nome mas
por “Estrala a bomba”, aproveitando o início da letra: “Estrala a bomba e o
foguete vai no ar”. Os músicos do grupo são reconhecidos na rua e apanham com o
mesmo epíteto. “Olha os ‘Estrala a bomba’!” exclamam, apontando, velhos e
novos. Os Estrala a Bomba, perdão, Adiafa, não escondem o seu contentamento, ainda
algo incrédulos com o sucesso alcançado pela sua música. “Sentimo-nos felizes por,
graças a nós, as pessoas darem mais atenção à música alenteja.”
Ao
almoço (afinal “adiafa” é sinónimo de “banquete”), no restaurante Os Infantes, edifício
com cerca de 600 anos, antiga discoteca e antes disso sede do extinto partido
político MES (Movimento da Esquerda Socialista), na lambança sem pecado proporcionada
por divinais feijoada de lebre, migas com carne de porco e perdiz estufada, bem
regados por um Vidigueira tinto monocasta “aragonês”, a conversa fluiu com a
mesma facilidade com que à noite se dança nas discotecas “As meninas da Ribeira
do Sado”.
Cada
um dos sete elementos do grupo, com idades entre os 26 e os 52 anos, acrescenta
a sua parte a uma história que parece ser de fadas.
António
Santos, “Toy”, o idealista anarquista, admirador de Bakunine, para quem a
liberdade dos homens é possível; Emídio Zarcos, aspeto “hippie” mas respeitável
professor de Educação Física; João Santos, “o encarnado”, sócia de Mick
Hucknall, dos Simply Red; José Emídio, apaixonado pelos “blues” e outras
músicas (“sempre que posso, canto ‘blues’, mas por que raio é que não consigo
cantar flamenco?”); Luís Espinho, incondicional do jazzrock (“um dia hei-de ouvir
o Joe Zawinul ao vivo!”); Paulo Colaço, o homem da “house” e do “drum‘n’bass”
que usou o programa Cubas” para fabricar em casa os beats da versão remisturada
de “As meninas da Ribeira do Sado”; e Joaquim Simões, executante de fagote que
passou uma noite em claro subjugado por uma partitura de Beethoven. Todos
diferentes mas unidos por um sonho: levar a música alentejana cada vez mais
longe e a mais pessoas.
A
discoteca UFO’s, antigo bar “underground” onde os músicos do grupo Revisão se
juntavam para fazer “jam sessions” (“bom rock e bom ‘blues’”, que ainda hoje
continuam a ser tocados num recanto do recinto que Carlos Lopes, gerente da
casa, considera “carismático”), faz parte dos locais de diversão de Beja onde
“As meninas da Ribeira do Sado” é tocada todas as noites, inclusive na versão tradicional.
“A primeira vez que me pediram para tocar a música dos Adiafa achei um bocado
esquisito, mas toda a gente aderiu. Até já estamos a pensar em fazer uma sessão
de karaoke... as pessoas cantam por
cima”, diz Carlos Lopes.
Ninguém
se recorda muito bem da origem do nome UFO’s, embora Carlos Lopes se lembre de
ouvir então falar em discos voadores. Já Emídio Zarcos acha que tem a ver com
“o estado da cabeça de algumas pessoas” que frequentavam o estabelecimento. O
que já bate mais certo com a semelhança entre este nome e o do mítico clube
inglês UFO onde, em 1967, os Pink Floyd e os Soft Machine inventaram a pop
psicadélica.
É
quinta-feira e faltam poucas horas para o UFO’s se encher de jovens
universitários com a cabeça mais ou menos fora do lugar, desejosos de
divertimento. Quinta é a noite de loucura de Beja. “3000 mulheres para cada
homem”, segundo avaliação, pouco científica, dos Adiafa. “Estrala a bomba” tornou-se
parte integrante dessa diversão.
A
Biblioteca Municipal José Saramago, considerada modelar e uma das melhores do
país, entrou nos hábitos da população mais jovem da cidade. Aberta até às onze
da noite, com um espaço infantil, café e ambiente informal, além de revistas e livros,
permite levar CD para casa. O dos Adiafa “está sempre fora”.
Sentados
às mesas do café, os jovens voltam as cabeças para os sete Adiafa enquanto estes
antecipam a folia que daí a poucas horas se instalará um pouco por todos os
locais noturnos da cidade. Cristina tem 25 anos e estuda na Universidade
Moderna. Investigação Social Aplicada. Vem todos os dias assistir às aulas. As
discotecas Caras e Lanterna Azul contam-se entre as suas eleitas. Para dançar
“As meninas da Ribeira do Sado”. “Já o fiz muitas vezes, aqui e noutros locais
do Sul”. Lídia, 22 anos, a estudar no mesmo curso, já dançou a “remix” em
Reguengos de Monsaraz, de onde é natural. Com a mesma idade, Ângela veio do
Montijo para estudar “Animação Sócio-Cultural”. O tema dos Adiafa é dos que
mais a animam. “Vi-os no outro dia num programa da televisão e achei curioso
ter como base uma recolha do cancioneiro popular, uma coisa que estava esquecida.”
A
partir de agora deixou de haver razões para que a música alentejana continue esquecida.
Os Adiafa tiraram-na do beco do “cante” e da viola campaniça, criando a partir
da tradição novos modelos. Está em curso a invasão da pop alentejana.
Vitorino e companhia
A música do Alentejo, em parte pelas suas especificidades, próprias de
uma tradição que tem mais a ver com o Mediterrâneo (o canto corso, por exemplo)
e o espólio polifónico medieval do que com as heranças etnográficas de todo o
território situado a Norte do Tejo, em parte pelo ostracismo político a que
durante décadas foi votado, conservou durante largos anos o estatuto de bolsa
marginal. A sua ligação à música urbana, processo agora encetado pelos Adiafa
ou por Paulo Ribeiro, tem, no entanto, antecedentes. Deixando de lado o espólio
discográfico tradicional fixado nas recolhas de Giacometti, na “Viola
Campaniça”, organizado por José Alberto Sardinha ou grupos corais como os das
Camponesas de Castro Verde, Camponeses de Pias ou os Ganhões, também de Castro
Verde, o selo alentejano está bem marcado na família Salomé, de Vitorino e
Janita, ainda que num registo que começou por estar conotado com uma atitude
revolucionária que era timbre da primeira geração de músicos da chamada Música
Popular Portuguesa. Álbuns de Vitorino como “Semear Salsa ao Reguinho” (1975),
“Os Malteses” (1977), “Não há Terra...” (1979), “Romances” (1980) e “Flor de la
Mar” (1983), são exemplares dessa conjunção entre folclore, dignidade e
ideologia. Após um período mais literário e “lisboeta” encetado com “Leitaria Garrett”
(1984), realça-se o recente “Alentejanas e Amorosas”, de 2001, que o autor
define como recuperação de um “romantismo mediterrânico e peninsular”. Janita
Salomé, numa perspetiva mais “world music” e assumidamente arabizante, assinou
trabalhos como “Melro” (1980), o clássico “A Cantar ao Sol” (1983), “Lavrar em
teu Peito” (1985) e, numa perspetiva mais abrangente e fusionista, “Raiano”
(1994) e o excelente e recentemente premiado “Vozes do Sul” (2001). Ele e
Vitorino, mais o irmão Carlos e Filipa Pais (autora de “L’Amar”, 1994, com o
delicioso e alentejano “Vox omnes”), encetaram a aventura, tão curta como cintilante,
dos Lua Extravagante.
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