24 de Maio de 1995
álbuns poprock
Um gafanhoto no cérebro
SCOTT WALKER
Tilt (Classificação: Qualquer uma de 0 a 10)
Fontana, distri. Polygram
Há aqui algo de errado. Algo de muito estranho e perturbador. Um desequilíbrio doentio, simultaneamente assustador e atraente. “Tilt” é um termo que se aplica à paralisia instantânea, à cessação de todas as funções de uma máquina de “flippers” quando o seu utilizador lhe aplica uma pancada, um choque superior ao que a sua programação aceita. A máquina de “flippers” – “flipper”, traduzido à letra significa “barbatana”, órgão de locomoção num meio aquático, como por exemplo, o pensamento… - é, neste caso, o cérebro de Scott Walker. Antes de entrarmos nos seus meandros, façamos, porém, em nome da prudência e de alguma cautela, um pouco de história. Scott Walker, então com o nome de Scott Engel, fez parte, ainda na primeira metade dos anos 60, dos Walker Brothers, um trio da Costa Oeste norte-americana cujos singles, como “My ship is coming in” ou “The sun ain’t gonna shine anymore”, alcançaram bastante sucesso do outro lado do Atlântico. Baladas, quase sempre narrando desgraças amorosas, que eram interpretadas em tons épicos e melodramáticos, num estilo de produção próximo do de Phil Spector. As vocalizações torturadas do então jovem Scott inspirariam, mais tarde, gente de exageros como Marc Almond, Julian Cope e David Bowie. Em 1967, Scott abandonou o grupo e partiu para uma carreira a solo.
Era a continuação de um trajecto que, a partir desse momento, se desviaria para alamedas bastante mais sombrias. Canções de Jacques Brel, um “hit”, com “Joanna” (incluído, juntamente com outros êxitos, seus e do grupo, na colectânea “No Regrets”, título de um tema de Tom Rush) e álbuns com títulos premonitórios como “Night Flights” e “Climate of Hunger” – este já uma obra ao negro que, na época (1984), com o selo Virgin, alertou para um dos universos mais originais da música popular – prenunciavam o estado geral de loucura que, onze anos mais tarde, se viria a concentrar neste seu novo trabalho. Antes de mergulharmos no poço de “Tilt”, digamos ainda que Scott Walker pode ser encarado como a sombra, o negativo, o lado trágico de Brian Wilson, outro dos mestres californianos, mentor dos Beach Boys, que apanhou demasiado sol na cabeça e, por isso, sucumbiu, também ele, à paranóia.
“Tilt” é um objecto único, desconfortável, impermeável tanto à análise distanciada como à adesão efectiva. Não dá prazer ouvir mas obriga a escutá-lo do princípio ao fim, com o coração no estômago e um arrepio na espinha. A ideia que dá é que, durante todos estes anos, Scott Walker não ouviu qualquer espécie de música e se fechou num quarto às escuras, a sós com as suas elocubrações. Não se pode falar de uma tradição, de uma continuidade, de nada que inspire segurança. O choque deriva em grande parte do contraste entre a voz e a música. Scott Walker, aos 52 anos, canta como sempre cantou, num estilo semideclamado e monótono, com súbitas inflexões que vão do tom de tragédia fotonovelesca à puerilidade de um adolescente. Ao ouvi-la, pensa-se em seres imaginários como um Frank Sinatra sob os efeitos de heroína, Elvis Presley regressado do além-túmulo, David Sylvian com 90 anos ou Bryan Ferry a falar durante o sono. “Crooner” dos abismos sentimentais, Scott Walker reina num país sem entrada nem saída para o comum dos mortais. A música é outro choque. Soa, como dizer, a nada que se conheça. Numa entrevista dada na edição deste mês à revista “Mojo”, Scott afirma que quis fazer um “nowhere record”. Conseguiu. Electrónica, industrial, minimalista, tribal, orquestral, hipnótica, repetitiva, tem tudo, incluindo um órgão de igreja (um dos seus instrumentos favoritos), o que caracteriza certas vanguardas das trevas. Podemos buscar auxílio na recordação da “Sinfonia industrial”, de Ângelo Badalamenti, do “filme negro” de Barry Adamson, em “Moss Side Story”, de David Bowie, no segundo lado de “Low”, ou no “The End”, dos Doors (Scott gravou uma sessão de temas de “American Prayer”, de Jim Morrison), na versão de Nico. Podemos pensar em ritos ocultos de Las Vegas ou num Festival da Eurovisão no mundo dos mortos. Talvez uma Hollywood espectral. Para baralhar ainda mais, lá estão dois convidados da “folk”, Andrew Ceonshaw, em sopros vários e concertina, e Nigel Eaton, um ex-Blowzabella, cuja sanfona é aproveitada em “Bouncer, see bouncer”, para imitar o ruído de gafanhotos (!)… Refira-se ainda que Scott Walker gravou há tempos uma sessão com Brian Eno e Daniel Lanois, nunca editada até hoje, porque, segundo diz, as letras são o mais importante. Os textos, de canções que se estendem com languidez ao longo de seis, sete ou oito minutos cada, são ainda mais elípticos. “Farmer in the city” repete obsessivamente o número 21, a idade de quem, de quê, em Vigo, no Rio, em Ostia, em “escuras casas de quintas recortadas contra o céu”. “The cockfighter” é digna de um filme de David Lynch. Os primeiros versos, “It’s a beautiful night from here to those trembling stars”, ainda sugerem uma normalidade que logo se perde em coisas do estilo “That ribbon [fita] cracks like this one and this one cracks like those over there and those over there crack like these two” ou, ainda mais “fora”, “And out of the rim [aro, orla, margem], all the calcium planets growing in the darkness all over the body, the flapping [no sentido de asas ou velas que batem e se agitam] body, clickety click, clickety click”. Em “Bouncer see bouncer”, fala da “auréola de um gafanhoto”… É sempre assim, num disco cuja capa dá a ver uma mão negra a esmagar olhos não humanos. Uma viagem nocturna pelos corredores do pretensiosismo ou da loucura, nunca saberemos ao certo, naquele que é, provavelmente, o disco mais estranho da década.
Sem comentários:
Enviar um comentário