Sons
16 de Outubro 1998
REEDIÇÕES
Pere Ubu
The Modern Dance (10)
Cooking Vinyl, import. Virgin
Em David Thomas, o amor confunde-se com a doença. O ódio com o desejo. A América, mãe opressiva, com uma paisagem que é ao mesmo tempo sinónimo de prisão e de libertação. As canções de David Thomas exprimem, em qualquer dos casos, os múltiplos paradoxos de uma personalidade atormentada. O grito das suas vocalizações de criança que sujou as fraldas pertence a um coração cheio de ternura, do qual o resto do corpo parece estar desajustado. Quando escreve sobre relações amorosas, torna-se necessário camuflá-las sob a aparência de lixo e a escorrerem óleo queimado. Porque David Thomas, senhor das moscas e coveiro da “barbie” cor-de-rosa que faz apodrecer o rock’n’roll nas suas mãos envernizadas, é a vítima e o carrasco e só ele pode ditar as leis da sua loucura. “The Modern Dance” fez soar o alarme em 1978, pondo ponto final parágrafo no “punk” e abrindo as portas à música industrial. Início de um percurso que o cantor e compositor insiste em conotar exclusivamente com o “way of life” norte-americano e que prosseguiria ao longo das duas décadas seguintes por novas obras de fôlego como “Dub Housing”, “New Picnic Time”, “The Art of Walking”, “Song for the Bailing Man” e “Tenement Year”, até às mais recentes “Ray Gun Suitcase” e “Pennsylvania”. Na garagem dos Pere Ubu, banhada pela luz de um pôr do Sol artificial filtrado pela poluição, nascia uma obra que orientava a temática do rock no sentido da mutação do individuo, da denúncia da civilização moderna e da avaria emocional. Centro de operações: Cleveland, não muito distante do laboratório onde os Devo analisavam as sensações de um mongolóide ao enfiar a mão numa torradeira eléctrica. “The Modern Dance” e “Q: Are We not Men? We Are Devo” seguem, aliás, estruturas idênticas, com a diferença de que enquanto os Devo empurravam a sua música (com a ajuda de Eno) para os canais da electrónica sintética, os Pere Ubu preferiam esfregar as feridas com uma lima até fazer espirrar o sangue. Sob os fantasmas da radiação e do holocausto, dois amantes esfregam-se, por sua vez, um contra o outro, numa “sentimental journey” de louça partida, numa tentativa para fazer saltar da fricção de carnes frias uma chispa de paixão.
16 de Outubro 1998
REEDIÇÕES
Pere Ubu
The Modern Dance (10)
Cooking Vinyl, import. Virgin
Em David Thomas, o amor confunde-se com a doença. O ódio com o desejo. A América, mãe opressiva, com uma paisagem que é ao mesmo tempo sinónimo de prisão e de libertação. As canções de David Thomas exprimem, em qualquer dos casos, os múltiplos paradoxos de uma personalidade atormentada. O grito das suas vocalizações de criança que sujou as fraldas pertence a um coração cheio de ternura, do qual o resto do corpo parece estar desajustado. Quando escreve sobre relações amorosas, torna-se necessário camuflá-las sob a aparência de lixo e a escorrerem óleo queimado. Porque David Thomas, senhor das moscas e coveiro da “barbie” cor-de-rosa que faz apodrecer o rock’n’roll nas suas mãos envernizadas, é a vítima e o carrasco e só ele pode ditar as leis da sua loucura. “The Modern Dance” fez soar o alarme em 1978, pondo ponto final parágrafo no “punk” e abrindo as portas à música industrial. Início de um percurso que o cantor e compositor insiste em conotar exclusivamente com o “way of life” norte-americano e que prosseguiria ao longo das duas décadas seguintes por novas obras de fôlego como “Dub Housing”, “New Picnic Time”, “The Art of Walking”, “Song for the Bailing Man” e “Tenement Year”, até às mais recentes “Ray Gun Suitcase” e “Pennsylvania”. Na garagem dos Pere Ubu, banhada pela luz de um pôr do Sol artificial filtrado pela poluição, nascia uma obra que orientava a temática do rock no sentido da mutação do individuo, da denúncia da civilização moderna e da avaria emocional. Centro de operações: Cleveland, não muito distante do laboratório onde os Devo analisavam as sensações de um mongolóide ao enfiar a mão numa torradeira eléctrica. “The Modern Dance” e “Q: Are We not Men? We Are Devo” seguem, aliás, estruturas idênticas, com a diferença de que enquanto os Devo empurravam a sua música (com a ajuda de Eno) para os canais da electrónica sintética, os Pere Ubu preferiam esfregar as feridas com uma lima até fazer espirrar o sangue. Sob os fantasmas da radiação e do holocausto, dois amantes esfregam-se, por sua vez, um contra o outro, numa “sentimental journey” de louça partida, numa tentativa para fazer saltar da fricção de carnes frias uma chispa de paixão.
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