17/03/2010

Música de câmara ardente [Carla Bley]

Sons

2 de Outubro 1998
JAZZ

Música de câmara ardente

Carla Bley
Fancy Chamber Music (8)
Tropic Appetites (9)
Watt, distri. Dargil
Escalator over the Hill
2xCD, JCOA, distri. Dargil


A música de Carla Bley é parecida com a música de Carla Bley e, mesmo assim, nem sempre. A compositora e teclista que hoje esconde a idade sob a farta cabeleira loura ocupa o centro de um universo musical sem paralelo onde as referências históricas se confundem. Desde os anos 60, Carla Bley vem dando novos mundos ao mundo, maquilhando-o com a sua própria máscara.
Ao jazz deu o mistério e o humor, quase sempre negro, fazendo da sua “big band” um circo e um funeral, uma fanfarra de loucos onde os “blues” desfilam de braço dado com os impressionistas e o “free” fica entalado numa caixa de música onde se deleitam o tango, as marchas militares, o “gospel” e alguns “cadáveres esquisitos”, equilibrados como por magia pela arte do contraponto. Obras-primas, gravou várias: “Musique Mécanique”, “Social Studies”, a partitura, nunca editada em disco, para a banda sonora de “Mortelle Randonée”.
Ao rock doou a inteligência e a estranheza reptilínea, polinizando com a sua presença álbuns como “Fictitious Sports” (onde assina todas as composições, embora o disco afixe o nome de Nick Mason) e “Kew. Rhone”, de John Greaves, Peter Blegvad e Lisa Herman. “The Hapless Child and other Incrustable Stories”, de Michael Mantler, manuscrito de obsessões e escuridão, em torno da poesia do inferno de Edward Gorey, é outra das obras onde participa com o seu órgão-realejo de boneca-dominatrix.
“Fancy Chamber Music”, o seu novo álbum, ultrapassadas derrapagens recentes, mesmo assim provocatórias, de um jazz varrido pelas facilidades do “music hall”, percorrido embora por uma intensa sabedoria, recoloca Carla Bley nos caminhos do inesperado. São seis peças, compostas ao longo de um período de 12 anos, de estrutura e instrumentação variada, que se encaminham num intimismo quase dilacerante, para a morte. Música viúva da alegria. Danças de um drama sem idade.
“Wolfgang tango”, como o nome indica, é uma variação para cordas, sopros, piano e bateria, girando ao redor dessa forma de paixão. Mas também o cruzamento com a valsa, essa dádiva do diabo, na qual o piano da compositora se condensa e concentra numa majestade de frases apenas enunciadas, em alegorias rematadas do fundo de um caixão. Dois curtos rituais de passagem, “Romantic Notion #4” e “#6”, para sopros e cordas, quebram, com o seu formalismo de quem recebeu nas mãos um novo brinquedo, as notas outonais e quase satieanas de “End of Vienna”, um diálogo a três entre um piano, um vibrafone e uma flauta que transportam nos seus ciclos toda a carga de nostalgia do século passado. “End of Vienna” carrega ainda consigo aquela beleza que enlouquece, de instantes e vidas, de infinitos instantes de infinitas vidas, insuportáveis, por não as podermos viver todas, excedendo a capacidade humana de sentir.
“Tigers in training”, o tema mais longo (18m39s), concentra uma temática cara a Carla Bley, o circo, metáfora do imprevisto e da combinação “ilógica” de elementos heterogéneos que formam o âmago da sua música. Cordas, clarinete, piano e percussão recriam os sentimentos do tigre em relação ao seu domador e aos outros animais do circo, as memórias da selva e os vários truques e habilidades que usa na arena. Uma caixa de música, elemento preponderante no imaginário musical de Bley (a própria essência, redimensionada em proporções épicas, em “Musique Mécanique”), reforça o ambiente de onirismo deste tema que acredita que “os tigres de circo podem levar uma vida satisfatória em cativeiro”.
O tema final, “JonBenet”, constitui a síntese perfeita de um disco triste como as flores lívidas da capa que se erguem, frágeis, sobre um piano. Inspirado numa recordação da infância, é ainda a morte que assoma como um fantasma, mas que Bley observa com a crueldade de quem brinca com a dor. A imagem de um brinquedo partido mistura-se com a notícia, lida no jornal, do assassinato de uma jovem rainha de beleza de seis anos de idade, JonBenet. “Que nome interessante!”, é o comentário final. A música de câmara de Carla Bley é música de câmara ardente.
Na mesma altura em que é editado “Fancy Chamber Music”, foram finalmente reeditadas em compacto duas obras capitais da compositora: “Escalator over the Hill”, cuja edição original, de 1971, em vinilo, apresentava a forma de triplo álbum e, de 1974, “Tropic Appetites”. “Escalator over the Hill” é uma ópera, ou melhor, uma “Chronotransduction”, com liberto de Paul Haines e participações, entre outros, de Michael Mantler, Charlie Haden, Paul Motian, Don Cherry, John McLaughlin, Jack Bruce, Linda Ronstadt, Gato Barbieri, Don Preston e Roswell Rudd. Com a estranheza de uma manobra subterrânea dos Residents e a teatralidade de um Kurt Weill, estridente ou lúgubre, “Escalator” é um trabalho inclassificável onde o experimentalismo mais ousado dá as mãos ao “mainstream” mais reaccionário. Trata-se de um híbrido atirado para o rodapé dos anos 70 que antecipou uma obra como “Der Mann im der Fahrstuhl”, de Heiner Goebbels e Heiner Muller.
Paul Haines volta a assinar os textos de “Tropic Appetites”, desta feita com a participação de Julie Tippett (Julie Driscoll, Tippett depois de se casar com o pianista Keith Tippett), de novo Paul Motian, Gato Barbieri (presente noutro disco que, já agora, também vale a pena escutar, “A Genuine Tongue Funeral”, de 1968, em que a música de Carla Bley é interpretada pelo quarteto do vibrafonista Gary Burton) e Michael Mantler (presença regular na big band), Howard Johnson e David Holland.
“Pastiche” (como, aliás, pode ser encarada toda a produção da compositora) de um certo tropicalismo exótico e cinematográfico, “Tropic Appetites” inclui “Enormous tots” – cuja estética pop prenunciava os “Fictitious Sports” com Nick Mason – e “Caucasian bird riffles”, uma vocalização típica de Julie Tippetts onde são visíveis as semelhanças com o estilo e a tecla emocional de Robert Wyatt. “Funnybird song”, enfeitada por uma melopeia infantil, com a sua melodia de chá das cinco, poderia ter sido escrita pelos Slapp Happy, enquanto “Song of the jungle stream” reinventa o psicadelismo em tons indianos que fez escola nos primeiros anos do Progressivo. “Tropic Appetites” é um teatro de Guignol de onde, a cada momento, saltam figuras monstruosas. Afinal, como de toda a música de Bley, até aos nossos dias.

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