cultura DOMINGO, 24 SETEMBRO 2000
Kronos Quartet interpretam obra de Philip Glass no Coliseu
de Lisboa
Drácula em concerto
"Drácula" esconde-se onde menos se espera.
Tenham medo, tenham muito medo dos caninos afiados do Kronos Quartet. O grupo
de cordas dá hoje a segunda dentada em Portugal na música de Philip Glass a
acompanhar o clássico filme de terror dos anos 30 de Tod Browning. O PÚBLICO
entrevistou o primeiro-violino e líder, David Harrington. Garante que a música
do minimalista americano não está exangue.
David Harrington é primeiro-violino e o diretor artístico do grupo de cordas
Kronos Quartet, 27 anos de existência ao longo dos quais foi alargando o seu
reportório a campos insuspeitos da música contemporânea. Da música étnica ao
minimalismo, passando pela "Canção dos verdes anos" de Carlos
Paredes, o objectivo é sempre "captar os melhores pensamentos dos melhores
compositores". Mas hoje, segunda e última de duas apresentações do grupo
no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, com a presença ao vivo de Philip Glass e as
imagens do clássico "Drácula" encarnado por Bela Lugosi em pano de
fundo, a noite vai ser de sustos.
PÚBLICO – Há o “Drácula” que gravaram
ao vivo sem a participação de Glass e o “Drácula” em concerto no qual o
compositor se apresenta ao lado do grupo a tocar teclados. São muitas as
diferenças de partitura e de execução?
DAVID
HARRINGTON – A versão original do "Drácula" escrita por Philip Glass
destinava-se ao Kronos Quartet a solo. Mas a realidade mostrou ser praticamente
impossível tocar ao vivo o que gravámos no disco. É incrivelmente difícil de
tocar, a dificuldade da escrita torna fisicamente impossível a sua transposição
integral para concerto. O disco levou seis dias a gravar mas acabámos por
verificar que na juxtaposição com as imagens, havia sequências ininterruptas de
20 minutos impossíveis de reproduzir ao vivo.
Pus pela
primeira vez a Glass a hipótese de tocarmos juntos há muitos anos, numa ocasião
em que executava um dos seus concertos para piano solo. Disse-lhe que era a
única pessoa do mundo que tocava a sua música da mesma maneira que nós! A
flexibilidade rítmica que ele lhe imprime – embora isso não aconteça numa peça
como "Einstein on the Beach" – também é percetível na nossa música.
P. – É curioso referir essa dificuldade
da música de Glass. É que não faltam vozes que o acusam precisamente do
contrário, de nos últimos anos se limitar a reproduzir em piloto-automático um
estilo que fez história...
R. –
Tente fazê-lo você! [risos]. Primeiro que tudo, a tonalidade desta música
necessita de ser executada com uma afinação perfeita. E o ritmo... Por vezes as
noas correm realmente depressa. Tocar a música de Glass, pelo menos com o nível
de exigência que pretendo, é verdadeiramente difícil. O que não falta por aí
são músicas consideradas “difíceis” nas quais o auditor não consegue garantir o
que está certo ou errado...
P. – Kronos Quartet tem sido sinónimo
de alguma transgressão e de uma escolha heterodoxa de reportório, como acontece
em “Kronos Caravan”. Este “Drácula” não é um passo em direção a um certo
academismo? Glass não será hoje um compositor académico?
R. –
“Drácula” representa a continuação de uma relação com Philip Glass iniciada em
1983. Não concordo que Glass tenha tornado um académico. Não corresponde, pelo
menos à minha definição de “academismo”, de alguém que dá aulas num
Conservatório e escreve para outros compositores ouvirem, alguém mais
preocupado com o que eles possam dizer sobre a sua música do que com as
opiniões do público ou dos intérpretes. Quando Glass escreveu para nós, em
1998, o seu “Drácula”, fê-lo de propósito para nós, sabendo exatamente o que
nós poderíamos fazer com ele. Foi-nos exigido o máximo. Não compreendo que um
compositor possa ser criticado só por ter um estilo característico. Na América
a imprensa faz muito essa acusação, com base nessa identificação imediata. Como
se ter um estilo fosse uma falha, algo inaceitável. No passado, compositores
como Haendel, Bach ou Mozart tinham um estilo pessoal muito marcado,
imediatamente identificável...
P. – Terry Riley é outro dos
minimalistas norte-americanos com quem costumam trabalhar. O seu estilo já é
menos identificável...
R. –
Somos grandes amigos. Já escreveu 12 peças para o quarteto, tocamos um peça
dele em “Kronos Caravan” e está neste momento a compor mais duas novas peças de
fôlego para nós. Aos 65 anos, está a passar por um período de grande atividade.
P. – O que pensa de um trabalho como o
do Balanescu Quartet, de adaptação da música eletrónica dos Kraftwerk ao
formato de quarteto de cordas? O Kronos atrever-se-ia a fazer algo de tão
radical?
R. –
Nunca ouvi esse álbum. Tocamos toda a música que sentimos como se fosse quase
obrigatório fazê-lo.
P. – Que critérios seguem na escolha do
reportório? Há dezenas de compositores a escreverem para o grupo...
R. – Há
música que ressoa dentro de nós. É a que gostamos de tocar. Há jovens
compositores a explodir de energia e ideias que eu gostaria que escrevessem
para nós. Pretendemos, acima de tudo, captar os melhores pensamentos dos
melhores compositores.
P. – Há alguma música de que gostem mas
que seja impossível o Kronos Quartet interpretar?
R. –
Deve haver, mas até hoje não encontrámos nenhuma! [risos]. Mas tocámos uma vez
uma coisa com uma orquestra-gamelão da Indonésia que... bem... fizemo-lo, mas
confesso que nunca percebi o compasso, como é que eles conseguiam tocar em
conjunto. O único instrumento que conseguíamos seguir era o gongo. Só quando
soava o gongo é que percebíamos em que ponto da música nos encontrávamos.
Totalmente misterioso. E a escala, esquisitíssima! Mas adorei a experiência,
tão diferente de tudo que o que tínhamos feito antes.
P. – Em “Kronos Caravan” tocaram com o
grupo romeno de ciganos Taraf de Haidouks. Foi fácil juntar uma abordagem
intuitiva dos intrumentos, inclusive de cordas, como a deles, com o rigor
formal do Kronos?
R. –
Curiosamente, os Taraf de Haidouks não são uma banda de improvisadores.
Conseguem executar toda a espécie de ornamentações. Embora o façam de ouvido
têm tudo claro na cabeça. As partituras são as suas memórias.
P. – Como e quando descobriram a música
de Carlos Paredes, que também interpretam em “Kronos Caravan”?
R. – É
um dos maiores músicos do mundo! Ficámos a conhecê-lo através de um disco
editado na nossa companhia, a Elektra Nonesuch, no princípio dos anos 90.
Demorou algum tempo até arranjarmos alguém para fazer os arranjos, no caso,
Osvaldo Golijov, a única pessoa que conheço capaz de transpor a música de
Paredes para quarteto de cordas e fazê-la parecer-se, de facto, com música de
quarteto de cordas.
P. – Porque não assinam mais vezes os
vossos próprios arranjos?
R. –
Estamos constantemente a fazer arranjos para os arranjos que os outros fazem
para nós! Reconheço, no entanto, não me sentir à vontade. Prefiro convidar
especialistas.
P. – Ao contrário de outros álbuns, em
“Kronos Caravan” utilizaram mais instrumentos além das cordas. Algum motivo
especial?
R. –
“Kronos Caravan” representa uma faceta específica do nosso trabalho, uma série
de explorações do som e de sentimentos diferentes. Trabalhamos em várias áreas
ao mesmo tempo. Por exemplo, Steve Reich está neste momento a escrever para
nós, bem como Henryk Górecki e Tom Verlaine, dos Television. Estão sempre a
acontecer coisas novas. Sentimo-nos como um pintor ao descobrir uma cor nova ou
uma técnica nova. Pode acontecer que quando executarmos a nova peça de Terry
Riley ela soe como os Taraf de Haidouks ou o Carlos Paredes!
DRÁCULA
DE TOD BROWNING
MÚSICA AO VIVO PELOS KRONOS QUARTET E PHILIP GLASS
LISBOA Coliseu dos Recreios, às 22h, bilhetes entre
3000$00 e 1000$00
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