03/04/2017

Drácula em concerto [Kronos Quartet]

cultura DOMINGO, 24 SETEMBRO 2000

Kronos Quartet interpretam obra de Philip Glass no Coliseu de Lisboa

Drácula em concerto

"Drácula" esconde-se onde menos se espera. Tenham medo, tenham muito medo dos caninos afiados do Kronos Quartet. O grupo de cordas dá hoje a segunda dentada em Portugal na música de Philip Glass a acompanhar o clássico filme de terror dos anos 30 de Tod Browning. O PÚBLICO entrevistou o primeiro-violino e líder, David Harrington. Garante que a música do minimalista americano não está exangue.

David Harrington é primeiro-violino e o diretor artístico do grupo de cordas Kronos Quartet, 27 anos de existência ao longo dos quais foi alargando o seu reportório a campos insuspeitos da música contemporânea. Da música étnica ao minimalismo, passando pela "Canção dos verdes anos" de Carlos Paredes, o objectivo é sempre "captar os melhores pensamentos dos melhores compositores". Mas hoje, segunda e última de duas apresentações do grupo no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, com a presença ao vivo de Philip Glass e as imagens do clássico "Drácula" encarnado por Bela Lugosi em pano de fundo, a noite vai ser de sustos.
         PÚBLICO – Há o “Drácula” que gravaram ao vivo sem a participação de Glass e o “Drácula” em concerto no qual o compositor se apresenta ao lado do grupo a tocar teclados. São muitas as diferenças de partitura e de execução?
            DAVID HARRINGTON – A versão original do "Drácula" escrita por Philip Glass destinava-se ao Kronos Quartet a solo. Mas a realidade mostrou ser praticamente impossível tocar ao vivo o que gravámos no disco. É incrivelmente difícil de tocar, a dificuldade da escrita torna fisicamente impossível a sua transposição integral para concerto. O disco levou seis dias a gravar mas acabámos por verificar que na juxtaposição com as imagens, havia sequências ininterruptas de 20 minutos impossíveis de reproduzir ao vivo.
            Pus pela primeira vez a Glass a hipótese de tocarmos juntos há muitos anos, numa ocasião em que executava um dos seus concertos para piano solo. Disse-lhe que era a única pessoa do mundo que tocava a sua música da mesma maneira que nós! A flexibilidade rítmica que ele lhe imprime – embora isso não aconteça numa peça como "Einstein on the Beach" – também é percetível na nossa música.
         P. – É curioso referir essa dificuldade da música de Glass. É que não faltam vozes que o acusam precisamente do contrário, de nos últimos anos se limitar a reproduzir em piloto-automático um estilo que fez história...
            R. – Tente fazê-lo você! [risos]. Primeiro que tudo, a tonalidade desta música necessita de ser executada com uma afinação perfeita. E o ritmo... Por vezes as noas correm realmente depressa. Tocar a música de Glass, pelo menos com o nível de exigência que pretendo, é verdadeiramente difícil. O que não falta por aí são músicas consideradas “difíceis” nas quais o auditor não consegue garantir o que está certo ou errado...
         P. – Kronos Quartet tem sido sinónimo de alguma transgressão e de uma escolha heterodoxa de reportório, como acontece em “Kronos Caravan”. Este “Drácula” não é um passo em direção a um certo academismo? Glass não será hoje um compositor académico?
            R. – “Drácula” representa a continuação de uma relação com Philip Glass iniciada em 1983. Não concordo que Glass tenha tornado um académico. Não corresponde, pelo menos à minha definição de “academismo”, de alguém que dá aulas num Conservatório e escreve para outros compositores ouvirem, alguém mais preocupado com o que eles possam dizer sobre a sua música do que com as opiniões do público ou dos intérpretes. Quando Glass escreveu para nós, em 1998, o seu “Drácula”, fê-lo de propósito para nós, sabendo exatamente o que nós poderíamos fazer com ele. Foi-nos exigido o máximo. Não compreendo que um compositor possa ser criticado só por ter um estilo característico. Na América a imprensa faz muito essa acusação, com base nessa identificação imediata. Como se ter um estilo fosse uma falha, algo inaceitável. No passado, compositores como Haendel, Bach ou Mozart tinham um estilo pessoal muito marcado, imediatamente identificável...
         P. – Terry Riley é outro dos minimalistas norte-americanos com quem costumam trabalhar. O seu estilo já é menos identificável...
            R. – Somos grandes amigos. Já escreveu 12 peças para o quarteto, tocamos um peça dele em “Kronos Caravan” e está neste momento a compor mais duas novas peças de fôlego para nós. Aos 65 anos, está a passar por um período de grande atividade.
         P. – O que pensa de um trabalho como o do Balanescu Quartet, de adaptação da música eletrónica dos Kraftwerk ao formato de quarteto de cordas? O Kronos atrever-se-ia a fazer algo de tão radical?
            R. – Nunca ouvi esse álbum. Tocamos toda a música que sentimos como se fosse quase obrigatório fazê-lo.
         P. – Que critérios seguem na escolha do reportório? Há dezenas de compositores a escreverem para o grupo...
            R. – Há música que ressoa dentro de nós. É a que gostamos de tocar. Há jovens compositores a explodir de energia e ideias que eu gostaria que escrevessem para nós. Pretendemos, acima de tudo, captar os melhores pensamentos dos melhores compositores.
         P. – Há alguma música de que gostem mas que seja impossível o Kronos Quartet interpretar?
            R. – Deve haver, mas até hoje não encontrámos nenhuma! [risos]. Mas tocámos uma vez uma coisa com uma orquestra-gamelão da Indonésia que... bem... fizemo-lo, mas confesso que nunca percebi o compasso, como é que eles conseguiam tocar em conjunto. O único instrumento que conseguíamos seguir era o gongo. Só quando soava o gongo é que percebíamos em que ponto da música nos encontrávamos. Totalmente misterioso. E a escala, esquisitíssima! Mas adorei a experiência, tão diferente de tudo que o que tínhamos feito antes.
         P. – Em “Kronos Caravan” tocaram com o grupo romeno de ciganos Taraf de Haidouks. Foi fácil juntar uma abordagem intuitiva dos intrumentos, inclusive de cordas, como a deles, com o rigor formal do Kronos?
            R. – Curiosamente, os Taraf de Haidouks não são uma banda de improvisadores. Conseguem executar toda a espécie de ornamentações. Embora o façam de ouvido têm tudo claro na cabeça. As partituras são as suas memórias.
         P. – Como e quando descobriram a música de Carlos Paredes, que também interpretam em “Kronos Caravan”?
            R. – É um dos maiores músicos do mundo! Ficámos a conhecê-lo através de um disco editado na nossa companhia, a Elektra Nonesuch, no princípio dos anos 90. Demorou algum tempo até arranjarmos alguém para fazer os arranjos, no caso, Osvaldo Golijov, a única pessoa que conheço capaz de transpor a música de Paredes para quarteto de cordas e fazê-la parecer-se, de facto, com música de quarteto de cordas.
         P. – Porque não assinam mais vezes os vossos próprios arranjos?
            R. – Estamos constantemente a fazer arranjos para os arranjos que os outros fazem para nós! Reconheço, no entanto, não me sentir à vontade. Prefiro convidar especialistas.
         P. – Ao contrário de outros álbuns, em “Kronos Caravan” utilizaram mais instrumentos além das cordas. Algum motivo especial?
            R. – “Kronos Caravan” representa uma faceta específica do nosso trabalho, uma série de explorações do som e de sentimentos diferentes. Trabalhamos em várias áreas ao mesmo tempo. Por exemplo, Steve Reich está neste momento a escrever para nós, bem como Henryk Górecki e Tom Verlaine, dos Television. Estão sempre a acontecer coisas novas. Sentimo-nos como um pintor ao descobrir uma cor nova ou uma técnica nova. Pode acontecer que quando executarmos a nova peça de Terry Riley ela soe como os Taraf de Haidouks ou o Carlos Paredes!

DRÁCULA
DE TOD BROWNING
MÚSICA AO VIVO PELOS KRONOS QUARTET E PHILIP GLASS
LISBOA Coliseu dos Recreios, às 22h, bilhetes entre 3000$00 e 1000$00

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