cultura SÁBADO, 23
DEZEMBRO 2000
Janita Salomé recria no seu novo álbum o cante alentejano
O Sul a várias vozes
O
Alentejo é pátria do Sul e o cante o centro musical do Alentejo. Um sul mítico,
banhado pelas notas do Mediterrâneo, que Janita Salomé recria em "Vozes do
Sul", um álbum onde o cante genuíno se olha ao espelho revendo-se em
retratos urbanos.
O balanço interior
de Janita Salomé adequa-se, sem chegar à coincidência, com o do cante
alentejano. No autor de "Cantar ao Sol", o Alentejo é o corpo de uma
miragem. O seu Sul é mais vasto, bebendo tanto numa das antigas tabernas do
Redondo como num oásis do Sara. Janita é um músico urbano com raízes na
planície. Dera-o a entender nesse seu disco, que passou a ser referência na
moderna música popular portuguesa, emaranhando-se mais tarde nas redes de um
certo excesso, em "Raiano".
"Vozes do Sul", acabado de
sair, embora já estivesse gravado há dois anos, coloca as coisas nos seus
devidos lugares. De um lado, Janita homenageia o cante na sua expressão mais
pura, oferecendo uma série de faixas às polifonias dos Cantadores do Redondo e
dos grupos Corais e etnográficos das Camponesas de Castro Verde, da Casa do
Povo de Serpa e "Os Ceifeiros de Pias", ficando o outro preenchido
com recriações também elas dispostas segundo duas conceções diferentes do som.
Ora num registo próximo da música de câmara, com arranjos para piano e quarteto
de cordas, ora reservando-se o gozo de trazer para o Sul um instrumento típico
do Norte "céltico" como a sanfona, ou de experimentar o exotismo de
garrafas afinadas e de uma parafernália de percussões árabes. Além disso,
Janita convidou para cantar ao seu lado, além dos irmãos Vitorino e Carlos, as
cantoras Filipa Pais, ainda não totalmente seca dos raios de uma Lua
Extravagante, e Bárbara Lagido, também tocada pela Lua e habituada a excursões
pelo jazz.
Para Janita Salomé, "este disco
prova que há uma quantidade de maneiras de cantar no Alentejo que não
simplesmente aquele coral polifónico que as pessoas conhecem, pesado e
denso". Este cante "pesado" e "denso", assume-o o
cantor como a "parte documental", o "ponto de partida" que
permitiu jogar outros dados, como a inclusão das cordas ou do piano. Ou a
experiência "aliciante" de juntar o cante, "por si só uma
'orquestra', com outra orquestra, sem nenhuma delas se destruir".
Ouvidos mais puristas poderão
surpreender-se com a "intrusão" da sanfona (tocada por Carlos
Guerreiro, dos Gaiteiros de Lisboa). Para Janita Salomé, tal não constitui
qualquer espécie de heresia e só não fez soar nestas "Vozes do Sul"
as palhetas duplas da gaita-de-foles, esse outro monstro das hordas do Norte,
porque não se lembrou.
Resistência
Poderia ser complicado juntar fações.
Como quando o cante se deixa colorir por outras tintas. No estúdio, foram
captadas em primeiro lugar as vozes, sendo-lhes depois adicionadas as partes
instrumentais. Não chegou, porém, a ser uma dificuldade. Janita Salomé cita a
propósito uma das contribuições dos Camponeses de Pias numa das faixas de
"Vozes do Sul": "Eles começam a moda num determinado tom e não
fogem um coma do princípio ao fim, é impressionante, se assim não fosse, se
houvesse flutuações tonais, teria sido impossível juntar os instrumentos".
Não deixa de causar uma certa
impressão o simples facto do cante tradicional alentejano, ao contrário de
outras formas tradicionais que se foram perdendo ou deteriorando ao longo do
tempo, manter viva a sua pujança. Mas a verdade é que se continua a cantar.
Talvez já menos, como era uso, nas tabernas - "alguns donos não deixam e,
por outro lado, existem em cada vez menor número" -, mas, mesmo assim, os
seus ecos continuam a ser levados para longe. O cante resiste.
"Talvez pela sua própria
natureza e pela forma como os alentejanos o exprimem no seu quotidiano, nos
locais de convívio, onde ainda é possível ver saltar espontaneamente meia dúzia
deles e começarem a cantar. Isso mantém-se. Em geral, as danças ou qualquer
outro tipo de música tradicional requerem uma encenação especial, uma ocasião
para acontecer, e ali não", explica Janita.
Ali, a ocasião tem sido desde há
muito propícia à expressão, através do cante, da dor, da revolta e da solidão,
mas também da solidariedade e da afirmação de uma especificidade social e
cultural. Janita não tem dúvidas que "o alentejano está muito apegado ao
cante, à sua terra e à sua identidade, talvez por ter sido marginalizado, se
recuarmos no tempo. Foi uma região muito sacrificada, o que acabou por fazer
nascer um sentido de solidariedade e uma necessidade de afirmação".
Ele, Janita Salomé, vive afastado da
sua terra natal, tornando-se, como o seu irmão Vitorino, um músico urnano -
visão distanciada mas insistentemente fixa no tal "ponto de partida".
Essa ligação com o berço geográfico "é alimentada por frequentes idas ao
Alentejo". Mas se calhar nem era preciso: "Lisboa é uma cidade do Sul
onde a maior comunidade de não-lisboetas são os alentejanos. Se me apetecer vou
a Tires ou ao Barreiro e encontro um grupo de alentejanos a cantar em locais
públicos".
Diálogo e
contemplação
"Vozes do Sul" é um
compromisso. Mas se o anterior "Raiano" despoletava o conceito, muito
"world music", de fusão – para o seu autor, "um momento de maior
urbanidade" – o novo álbum aproxima os extremos através do diálogo,
nalguns casos, e da contemplação mútua, noutros.
Porque o Sul de Janita Salomé não
termina no Alentejo mas estende-se para além dele até ao Mediterrâneo, e mais
para lá ainda, até ao Sul da imaginação, com regresso ao Redondo. "É desse
Sul que também falo, das suas memórias e das suas origens, da presença dos
povos islâmicos aqui. Do sinal das presenças islâmicas na música
alentejana".
Algures no alinhamento de
"Vozes do Sul" esconde-se um dos seus momentos mais interessantes,
cabendo ao ouvinte a tarefa de o encontrar. Aí se pode ouvir, em toda a sua
pureza, uma sessão de "cante do baldão". Janita destapa uma ponta do
véu: "É surpreendente ouvir cantar à alentejana com acompanhamento
instrumental e, nesse tema, isso acontece de uma forma muito própria, com
aqueles poetas populares repentistas, todos ótimos cantores, cada um com o seu
estilo. Eu, se quisesse participar, não seria nada fácil. Cantar como eles
cantam, com as regras próprias do cante do baldão, em dupla quadra e com a
estrofe a ter que acabar no primeiro ou no segundo verso, é complicado... E
então improvisar é uma carga de trabalhos...".
Trabalho é o que não tem faltado ao
cantor. Tem pronto material para uma série de novos CDs, embora "muito
papel vá ser rasgado pelo meio" e, "se tudo correr bem",
"Vozes do Sul" terá uma apresentação ao vivo em Fevereiro do próximo
ano no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, com a presença de todos os músicos
que participaram no disco.
No horizonte perfila-se ainda a
possibilidade de um trabalho conjunto com o Opus Ensemble e outro com o
guitarrista dos Madredeus, José Peixoto, outro músico apaixonado pelo Sul.
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