LIVROS
Depois de
“Lupa”, o álbum de canções, Sérgio Godinho escreveu e desenhou para as crianças
um “Pequeno Livros do Medos”. Histórias de papões e de iniciação no mistério,
até ao confronto final com o “bicho desconhecido” que se esconde no sótão.
Medos para os pequenos
Depois de "Lupa", o
álbum de canções, Sérgio Godinho escreveu e desenhou para as crianças um
"Pequeno Livro dos Medos". Histórias de papões e de iniciação no
mistério, até ao confronto final com o "bicho desconhecido" que se
esconde no sótão.
O que
distingue a criança do adulto é a inocência. Deixamos de ser crianças quando
perdemos a inocência. Adão e Eva comeram a maçã e foi o que se viu. Enquanto
adultos podemos ser puros. Mas nunca inocentes.
Os adultos escrevem livros para as crianças
lerem da mesma maneira que as crianças escrevem para os adultos lerem, com a
diferença de que, neste último caso, as obras costumam vender menos. Nenhum
adulto que escreve livros para crianças é inocente ou escreve livros inocentes.
Razão por que as crianças, ao lerem os livros que os adultos escrevem para
elas, vão perdendo aos poucos a inocência até se tornarem, elas próprias,
adultos. Infelizmente as crianças não escrevem para si próprias tanto como
deveriam. Talvez os editores achem que cometem demasiados erros de ortografia.
Sérgio Godinho escreveu e ilustrou
para as crianças um livro inteligente a que chamou "O Pequeno Livro dos
Medos". Não teve medo de o fazer. E saiu-se bem. Porque escreveu como se
estivesse a compor música. "O Pequeno Livro dos Medos" ouve-se tanto
como se lê. E as crianças gostam disso. Até porque, como está provado, têm
melhor ouvido do que os adultos.
Aliás, toda a literatura existe, em
primeiro lugar, para ser ouvida. As palavras não são outra coisa senão varinhas
de condão que mexem em quem as ouve. O texto, falado ou escrito, funciona como
instrumento de magia. A ciência fala em processos de correspondência, de
simpatia, que se desenrolam no cérebro do leitor, mas a palavra magia tem
bastante mais força e as crianças entendem-na melhor. Ali-Babá soletrava
"Abre-te Sésamo!" e a porta que dava para a gruta do tesouro,
obedecia-lhe, escancarando as goelas do segredo e da riqueza.
O escritor e, sobretudo, o poeta são
músicos das palavras. Nietzsche, que foi provavelmente o mais musical dos
filósofos-poetas, escrevia/compunha em diálogo íntimo com o mais íntimo que
existe dentro de cada um de nós. Tanto assim que a leitura de uma obra como o
Zaratustra causa medo.
Sérgio Godinho empreende, com outra
candura, a exploração desse lado manipulatório (só a palavra mete medo, mas é
mesmo assim) da escrita. Porém não se ouvem gritos. Até porque as crianças,
dando a entender o contrário, são menos medrosas que os adultos na forma como
se entregam de livre vontade aos ventos da noite. E sabem tirar partido e gozo
do medo (Sérgio Godinho chama-lhe um "brinquedo", logo no primeiro
parágrafo). Não admira que o autor brinque, como numa das suas canções, em
jogos combinatórios: "Sou o bicho dos medos desconhecidos. Sou o
desconhecido do medo dos bichos. Sou o medo dos bichos desconhecidos. Vira-me
do lado que quiseres, que eu sou teu conhecido."
"O Pequeno Livro dos
Medos" começa por bisbilhotar no dicionário, esse outro livro prisão que
ensina a arrumar o caos da linguagem. O autor procurou nos sinónimos e
encontrou para "medo": "susto, receio, horror, pavor, cagaço,
cobardia, desconfiança, temor, terror, pânico, assombramento...". Isto
porque, diz ele, convém logo de início "olhar para dentro do medo" e
"descobrir como ele funciona", esse "sentimento desagradável que
excita em nós aquilo que parece perigoso, ameaçador, sobrenatural".
Sabendo-se do nome do monstro com
quem se está a lidar, o autor atira-se de cabeça para dentro da cabeça dos
miúdos. Sem os assustar. Mostrando-lhes desenhos de rostos e seres
"assustadores", entre o figurativo e as manchas do teste projetivo de
Rorschach. E contando histórias de medos. Do dono de um circo que ameaça soltar
um terrível leão ou do dono (já são dois "donos" - é curioso - as
personagens que metem medo. Crítica subtil ao capitalismo?) de uma drogaria que
mantém encerrado nas traseiras um bicho terrível que "o melhor é ninguém
ver".
Começam por ser "bichos",
reais ou imaginários, os desencadeadores dos terrores infantis. Com base neste
bestiário, porém, Sérgio Godinho conduz com suavidade os olhos espantados e
gulosos dos seus pequenos leitores até ao sótão dos medos metafísicos, onde se
"ouvem sempre misteriosos passos que não podem ser de ratazanas (...)
passos de alguém que é leve e pesado ao mesmo tempo", levando-os "ao
encontro do bicho desconhecido".
É no sótão, no escuro "onde se
desvendam os mistérios", que a criança enfrenta, olhos nos olhos, esse
"desconhecido que mete medo e ao mesmo tempo apetece conhecer", e
descobre no baú uma carta escrita pelo avô ao pai, onde se oferece a solução. A
família - chave de segurança que ajuda a enfrentar os sucessivos embates do eu
com o exterior, na sua contínua metamorfose de auto-descoberta.
Idealizam-se mil formas de esconder,
eliminar o papão para, finalmente, a criança o reconhecer como parte integrante
de si própria.
É o momento de "silêncio e
respeito", em que ambos "ficam a olhar de frente um para o outro,
como se fossem dois velhos conhecidos que nunca se tinham visto". Sem que
seja possível descobrir a espada capaz de cortar a cabeça ao medo, a verdade é
que o João (é este o nome do pai da criança a quem tudo isto sucedeu quando
também ele era miúdo) "olhou à volta e não viu medo nenhum".
"Talvez tivesse voado pela janela aberta". Como um pássaro.
Ou talvez o medo "continuasse
no fundo do mar, à espera de um polvo que por ali nunca passará". Nós,
adultos com medo de ter medo, ficamos pelo nosso lado à janela, esperando, como
no conto de Kafka, "pela mensagem que nunca chegará".
O Pequeno Livro dos Medos
AUTOR Sérgio Godinho (texto e
ilustrações)
EDITOR Assírio
& Alvim, 48 págs. 2500$00
ARTES
sábado, 16 dezembro 2000
Sem comentários:
Enviar um comentário