03/04/2017

Ala que se faz luz [Ala dos Namorados]

SÁBADO 21 OUTUBRO 2000 cultura

“Cristal” apresentado no CCB, em Lisboa

Ala que se faz luz

Foi quase brilhante a apresentação da Ala dos Namorados na segunda de duas noites no CCB para mostrar as canções do novo álbum "Cristal". Depois de uma primeira parte de fado e intimismo foi hora de "showtime", com grandes canções, convidados e Nuno Guerreiro no seu melhor, a dançar e a cantar.

Apenas uma das treze canções do novo álbum da Ala dos Namorados, "Canção de Edite", ficou de fora do alinhamento de quinta-feira, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, na apresentação do novo álbum "Cristal". Ontem foi a vez do Coliseu do Porto receber o grupo.
Doze em vez de treze, talvez para não dar azar. Sorte teve quem lá esteve para ouvir aquela que será hoje a única banda portuguesa a poder acalentar esperanças de percorrer a mesma estrada que leva às estrelas dos Madredeus.
Primeiro foi uma concha de segredos. Com os seis músicos concentrados no centro do palco, "unplugged", expostos ao que desse e viesse.
Veio primeiro a introdução instrumental, ao jeito dos "dias da rádio", do "Fado da rádio", seguindo-se "Medo do escuro", "Mistérios do fado" e "Fado de amor e pecado. Nuno Guerreiro foi fadista e Manuel Paulo acordeonista de "vaudeville", apenas se lamentando que, nesta ala mais calma da Ala, João Gil insistisse nas introduções à guitarra nota a nota em estilo cochicho. O instrumental "Ruas e praças" antecedeu "A rua do gato preto" e "Lisboa ausente", fechando a primeira parte com as sonoridades medievais de "Não tragais Bourzeguis pretos" e "Lua de todos", este último com João Gil a improvisar em duo com o guitarrista convidado Mário Delgado, mal amplificado, de tal forma que o ex-Trovante foi mesmo obrigado a aproximar o ouvido para conseguir ouvir o que se passava na guitarra do seu companheiro. Quando o técnico de som se lembrou finalmente de subir o volume de som, já a improvisação dera o que tinha a dar.
Intervalo. Entre a música escolhida para entreter passou um tema pop progressivo, "Isn't it quiet and cold?", do primeiro álbum dos Gentle Giant. Fosse quem fosse o programador, os nossos parabéns!
Extensivos – os parabéns – à Ala dos Namorados que, ao longo de toda a segunda parte, deu espetáculo. Já com os músicos espalhados pelo palco, os seis que habitualmente integram a Ala mais os convidados Daniela Brito, no violoncelo, e o brasileiro André Rocha, nas percussões, a música explodiu em luzes e cambiantes sonoros.
Um "Café paraíso" em pleno território do Progressivo e "Como seria" desembocaram no épico "Razão de ser". Nuno Guerreiro foi para a boca de palco dançar e tirar moedas dos bolsos numa performance coreográfica que a música completou de forma magnífica, com "glam", funky no clarinete baixo de José António Santos, luzes de cabaré e farrapos esvoaçantes de "Eleanor Rigby", dos Beatles, a clicarem segredos na memória. "Showtime"!
O music-hall de "Olha por ti" (com as cornetas de "Winchester cathedral" a soar) e o Brasil de "História de pedra", recriado por André Rocha no berimbau e com Manuel Paulo imaginativo nas programações eletrónicas, foram outros momentos altos de uma noite de cristal ao rubro. Tão ao rubro que o tema seguinte, "Rosa negra", foi dedicada aos bombeiros. Mas ao contrário dos soldados da paz a Ala dos Namorados ainda ateou mais o fogo, com o lança-chamas das percussões a espalhar as labaredas e tempo de antena alargado para Manuel Paulo no piano fazer o vento mudar várias vezes de direção.
"Alice", jazzy, concluiu com Nuno Guerreiro a castigar o ar com o já famoso "pontapé Marco", enquanto a "Rapariguinha do shopping", de Rui Veloso, alardeou alegria na secção de sopros, aumentada pelo trompete de Laurent Filipe e o trombone de Ruben Santos. Manuel Paulo, num registo de órgão Hammond, conferiu ao tema um toque "lounge".
"Zé passarinho", "Fim do Mundo" e "Loucos de Lisboa" teriam fechado com chave de ouro se o público, como era previsível, não tivesse pedido mais. Entusiasmados com a reação da sala e consigo próprios (Nuno Guerreiro balbuciava "emoções" e "sentimentos" em atropelo) a Ala voltou para "Luar um dia", "Solta-se o beijo" e um "Siga a marinha" que André Rocha transformou numa sessão de timbalada ao usar um carrinho-de-mão como instrumento de percussão.
"Cristal" brilhou com intensidade no CCB. Nuno Guerreiro está a cantar como nunca, exibindo-se como um verdadeiro "entertainer". Os cinco instrumentistas funcionam como uma máquina. A Ala dos Namoradas venceu mais uma vez a batalha.

Sem comentários: