29 de Janeiro 1999
Segundo milagre de
Fátima Miranda
Ao
contrário do que aconteceu no Verão Passado no Centro Cultural (CCB), em
Lisboa, no Rivoli do Porto ninguém abandonou a sala. Fátima Miranda foi
arrebatadora nesta sua segunda apresentação em Portugal, com uma encenação
vertiginosa que leva aos limites a voz humana.
Na
primeira das suas duas apresentações, quarta-feira, no Pequeno Auditório do
Teatro Rivoli, no Porto, Fátima Miranda fez abrir a boca de espanto a um
público que encheu por completo o recinto. Mas se a falta de conhecimento
prévio da obra da autora de "Concierto en Canto" é susceptível de
provocar um choque nos auditores mais desprevenidos não é menos verdade que o
impacto e a surpresa jogam a favor da cantora, transformando-nos em
espectadores de um jogo que a cada momento nos leva a interrogar sobre a
interpretação e a essência do canto. "De Ida y Vuelta", como se
designa o espetáculo, integrado no ciclo "Caminhos da Índia", começa
pelas mãos. "Dhrupad dream" nasce das trevas do palco, com os
projectores iluminando apenas um par de mãos que se movem como entes autónomos.
A voz acompanha os movimentos das mãos, em tempo real e pré-gravada, criando
uma sobreposição de "drones" (sons contínuos) e glissandos que partem
da assimilação das técnicas Dhrupad do canto indiano para se afastarem progressivamente
em direção ao desconhecido. Fátima Mirada afaga a voz, dá-lhe a forma das mãos,
estende-a num fio invisível que afasta ou puxa para si. As mãos adquirem o
feitio de uma ave, de uma medusa, de estrelas-do-mar, de uma concha, numa
metamorfose que sublinha os tempos, as texturas e as interjeições vocais.
"Diapassion" prolonga a ligação à Índia mas vai mais longe na viagem.
Agora Fátima Miranda está sentada em frente a um ecrã colorido, fazendo-se
acompanhar pela respiração de um pequeno órgão de foles. A voz fica suspensa,
eleva-se a impossíveis agudos para logo descer em cascata até murmúrios
guturais. Vão-se abrindo sucessivamente pequenas caixas de onde brotam sons de
grilos. Faz-se noite e a Natureza entrega-se a esta feiticeira que tudo domina
com a sua voz. Mas Fátima Miranda não se limita a cantar. Também o seu corpo
faz questão de dar a conhecer a originalidade, o drama e o humor, do seu
discurso. É o teatro que surge em "Asaetada". Nos pés descalços que
marcam o compasso enquanto Fátima segura a roda da saia e personifica a megera
que discute e provoca, arrancando à voz onomatopeias de riso e desafio. Em
"Tala tala, que tala tala? Que tal" aparece vestida com um vestido
garrido, em vermelho e negro, numa pose "kitsch" de bailarina de
flamenco. Uma faca atravessa-lhe a cabeça de lado a lado. Quem esteve no
espetáculo do CCB, assistindo de longe a esta "performance" em que a
inocência se confunde com a crueldade, não pôde aperceber-se do jogo facial de
Fátima Miranda que nesta peça vai afivelando uma gama inacreditável de
expressões que vão da boneca de trapos à atrasada mental, da Lolita à
"tia" enfastiada. Impossível não soltar uma gargalhada. Logo a seguir
a um curto interlúdio em voz "off", "Hálito", Fátima termina
com "El Principio del Fin" um dos temas do seu álbum "Concierto
en Canto". Aqui o virtuosismo confunde-se com o exibicionismo, num
prodigioso contraponto da voz real com uma polifonia de vozes gravadas, da
Fátima real com as quatro Fátimas virtuais que cantam em vídeo em absoluta sincronização
com ela. As palavras desmultiplicam-se em repetições criando ciclos rítmicos
minimalistas que evocam algumas das experiências fonéticas de Paul de Marinis e
Scott Johnson. Mas Fátima Miranda, mais uma vez, vai muito além do simples
canto, assumindo agora a figura mundana que esbraceja na febre de Sábado à
noite. Provocante, coquete, de uma feminilidade absurda, enfiada no seu traje
noturno de negro e lantejoulas, Fátima Miranda faz desfilar o seu delírio de
diva com voz de polvo. Termina deste modo um espetáculo de extrema
originalidade ao qual o público corresponde aplaudindo de pé, obrigando a
cantora espanhola a regressar para um "encore", "Canto
Largo", onde fica uma vez mais evidente a excepcionalidade dos seus
recursos vocais. Onde nasce e morre, afinal, a voz, sem princípio nem fim, de
Fátima Miranda? Provavelmente, no oceano de silêncio que se estende para lá da
loucura.
1 comentário:
Estive no Rivoli e também eu abri a boca de espanto. Foi memorável.
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