22 Abril 1992
A BELEZA DAS COISAS SIMPLES
GABRIEL YACOUB
Bel
CD, Keltia, distri. Mundo da Canção
Não sejamos avaros na apreciação: “Bel” é o melhor álbum de canções, sem mais, de há muitos anos a esta parte. Quanto à voz do seu autor, Gabriel Yacoub, é ao mesmo tempo vibrante e pungente, uma espécie de sortilégio cintilante que se insinua, audição após audição, no sujeito que ouve.
Gabriel Yacoub acompanhou Alan Stivell, à época de “Chemins de Terre”. Com o bardo bretão aprendeu o gosto pela música tradicional. Depois, com a irmã Marie Yacoub, formou uma banda que se viria a tornar lenda, os Malicorne, para muitos, incluindo o autor destas linhas, uma das mais importantes de sempre, em toda a Europa, do movimento de renovação de música tradicional.
Os Malicorne deixaram para a posteridade seis obras geniais, três denominadas simplesmente “Malicorne”, “Almanach” (obra-prima absoluta baseada em 12 rituais agrícolas e religiosos, correspondentes aos 12 meses do ano), “L’Extraordinaire Tour de France d’Adélard Rousseau” (périplo iniciático de um “maçon” pelo mapa oculto da França) e “Le Bestiaire”, antes da decadência e da cedência a um pop electrónico de eficácia duvidosa, com “Le Balançoir en Feu” e “Les Cathédrales de L’Industrie”.
Extinta a chama Malicorne, Gabriel Yacoub enveredou por uma carreira a solo com resultados desiguais. Os dois primeiros álbuns não poderiam ser mais opostos. “Trad. Arr.” marca o retorno à simplicidade de arranjos e a uma veia declaradamente folk, enquanto “Elementary Level of Faith”, gravado nos Estados Unidos, investe de novo sem deixar grandes recordações, numa via electropop semelhante à de “Cathédrales”.
“Bel” dá o grande salto em frente e atinge, como um raio, a perfeição. São 11 temas em estado de graça que não cabem em qualquer categoria possível senão na do génio. Num disco que apenas inclui dois tradicionais, o quebequiano “Ma délire” e “Nous irons en Flandres”, é toda a arte do canto de Yacoub que se eleva a alturas insuspeitadas e aos extremos de emoção que caracterizam as obras maiores.
Partindo de fontes de inspiração tão díspares como um texto do filósofo Gaston Bachelard (“L’Eau et les rêves, essai sur l’imagination de la matière”, em “L’Eau”), uma história do autor simbolista Gustav Meyrink (no instrumental “Le jeu des grillons”) ou uma das muitas viagens a Nova Iorque, em que aprendeu a sentir pela cidade “uma amor irracional” (“Je pense à toi”), “Bel” impressiona sobretudo por ter essa qualidade que distingue um bom disco de uma obra-prima: o sopro da inspiração.
Chamem-lhe génio, chamem-lhe outra coisa qualquer, mas quando se escuta e sente uma canção como “Les Choses les plus simples” compreende-se que o absoluto está ali mesmo, num refrão celestial, numa voz como não há igual no universo, no amor que se desvela numa rosa sem espinhos. E logo no tema seguinte, de novo o paraíso, em mais uma peregrinação vocal de sonho, na comoção levada ao épico de “Nous irons en Flandres”.
Os arranjos servem cada canção com requintes de esplendor. “Bon an, mal an” e “Je serai ta lune" elevam-se sobre um quarteto de cordas (do qual faz parte René Werneer, antigo companheiro de Yacoub nos “caminhos de terra”), em teias harmónicas que recordam a obra capital dos primeiros Gentle Giant (de “Acquiring the Taste” e “Three Friends”). “Ma delire” é um novelo vocal complexo feito de texturas vocais sobrepostas da voz de Yacoub. “Words” consubstancia a glória harmónica da voz, das vozes, da “magia das palavras” além da língua e do significado. Sublime a gaita-de-foles de Jean Blanchard no tradicional “Nous irons en Flandres” ou nos sonhos povoados de “lobos negros” que uivam durante a “estação das estrelas” de “D’abord je ne me souviens plus”.
E volta-se sempre, uma e outra vez, a “Les choses les plus simples”, ao mistério de uma melodia que reconhecemos ter sido nossa desde sempre. “Bel”, nome de uma divindade celta solar, também quer dizer “Belo”. (10)
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