09/09/2008

Contra a natureza [SPK]

Pop Rock

27 JANEIRO 1993
REEDIÇÕES

CONTRA A NATUREZA

SPK
Leichenschrei (3)
Information Overload Unit (5)
Zamia Lehmanni – Songs of Byzantine Flowers (8)
CD Side Effects, distri. Edisom

De enfermeiro num hospital psiquiátrico, Graeme Revell chegou a autor da banda sonora de “Até ao Fim do Mundo”, de Wim Wenders. Antes da chegada aos filmes, gravou uma mão cheia de álbuns que abarcam campos tão distintos como a música industrial tendência Throbbing Gristle, de “Second Annual Report”, o disco metálico (“Digitalis Ambígua – Gold and Poison”), as fusões electroétnicas (“Oceânia”) e sons de insectos trabalhados por computador (“The Insect Musicians”). Pelo caminho foi ficando o odor fétido da putrefacção. Os SPK são Graeme Revell – coadjuvado numa ou noutra ocasião por músicos convidados, nomeadamente a vocalista Sinan –, um australiano com tendência para dissecar o horror e a perversão em geral.
“Leischenschrei” e “Information Overload Unit” lidam com tabus. Sobretudo com a morte. Correspondentes à fase industrial, servem-se do ouvinte como cobaia, experimentando o efeito de frequências nocivas ou, a nível psicológico, de palavras e imagens tendentes a despoletar o lado subterrâneo e infernal da natureza humana. Os assuntos giram à volta de temas perturbantes: doença, sexo entre cadáveres, administração de drogas indutoras de loucura, maquinismos diabólicos, condimentados por fotografias e mutilações e dissecações várias extraídas dos arquivos do instituto de medicina legal.
Faca de dois gumes em que a ambiguidade funciona ao nível da atracção/repulsa. Um texto, incluído no folheto explicativo de “Leischenschrei” dá o mote: “… a laceração de tecidos, corpos e informação. Mutilações, mutações, deformações são como a memória inconsciente do holocausto que a ciência faz da vida. O nosso campo de concentração é o laboratório médico-científico, o hospital, a terapia, a morgue, a maquilhagem de cadáveres. Corpos dissecados com indiferença metódica”. Completam esta versão sonora dos “120 Dias de Sodoma” do Marquês de Sade, textos de Michel Foucault e informações sobre a utilização no psiquismo humano das tais frequências, visando o aumento da sugestão e do medo, segundo o manual básico do aprendiz de mago negro. Em termos auditivos é 90 porcento ruído mais 10 porcento vozes em agonia.
“Zamia Lehmanni” é o outro lado de um mesmo movimento que começa na dissolução e banalização do horror e se completa na inversão. Do “hiper-realismo” de um “zoom” aplicado num cadáver, a rotação inflecte aqui no romantismo e no lado “limpo” e “culto” de uma realidade voltada do avesso. A morte veste a caraça da vida. A caveira cobre-se com a pele sintética de um manequim. Fala-se em “sagrado” para se dizer “ímpio”. A besta disfarça-se de Cristo.
Partindo da influência oriental e da civilização bizantina, em particular no estabelecimento do cristianismo no Ocidente, o jogo passa para o lado da electrónica ritual e de uma solenidade sobrevoada pelo espectro de fábricas laborando em surdina, cânticos gregorianos e invocações a divindades pagãs. A luz fria dos néons da morgue cede o lugar ao dourado e à iconografia religiosa. Com apoio em fragmentos de Yeats, Mallarmé, Lautréamont, Huysmanns, Rimbaud, Baudelaire e Beckett, profetas do niilismo e do desespero. O título da obra de Huysmans citada sintetiza todo um manifesto de intenções: “Contra a Natureza”. Portanto contra Deus e contra o homem. Considerações morais à parte, “Zamia Lehmanni” é um disco de inegável beleza. A beleza mortal de Lúcifer.

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