19/09/2008

O jogador de xadrez [Peter Hammill]

Pop Rock

27 MAIO 1992

O JOGADOR DE XADREZ

Para muitos considerado quase um deus, Peter Hammill tem sido o companheiro de muitas vidas, de odisseias interiores, uma espécie de tradutor do que nos vai cá dentro de mais profundo e secreto.


Desde sempre as palavras constituíram o centro, o ponto de partida e de chegada do universo deste autor e compositor. Há mesmo quem queira ver nele um dos maiores poetas ingleses vivos. Dispensem-se os sons, que mesmo assim as palavras de Hammill vibram e explodem-nos na cara, nas colectâneas de poemas “Killers, Angels, Refugees” e “Mirrors, Dreams & Miracles”.
Mas falar de Peter Hammill é falar dos Van Der Graaf Generator, expoente mámixo, na década de 70, do rock progressivo, designação neste caso insuficiente para definir um som original que foi capaz de erguer a música popular à altura dos grandes épicos. Três álbuns (descontando a estreia incipiente “The Aerosol Grey Machine”) definiram numa primeira fase da banda todo um mundo exploratório de sons – entre o free-jazz, a electrónica e o rock – e dos fantasmas que sempre assombraram o se líder, pianista, guitarrista e vocalista, Peter Hammill: “The Least We Can Do Is Wave to each Other”, “H to He, who Am the only One” e “Pawn Hearts”, este último talvez uma das maiores obras de sempre da música popular, levando às últimas consequências o jogo de xadrez travado entre um coração aprisionado e o absoluto, entre as trevas e a luz.
Neles, a poesia de Hammill é o fio condutor que permite avançar por entre um quadro de horror e paranóia onde anjos e demónios de digladiam e tecem o destino do indivíduo à deriva nas suas próprias emoções. O amor eclode como um intruso neste universo que se diria encenado por H. P. Lovecraft, mas sempre parasitado por uma lucidez exacerbada que impede o mínimo gesto de espontaneidade.
A segunda fase dos Van Der Graaf é mais violenta, a energia mais directa, as palavras, tão complexas como sempre, demandam a impossível totalidade: “Godbluff”, “Still Life” e “World Record”, trilogia do psiquismo humano em combustão, colorida a fogo pelos saxofones em fúria de David Jackson, o órgão litúrgico de Hugh Banton e as deflagrações de dinamite de Guy Evans , na bateria. “The Quiet Zone/The Pleasure Dome” é igual à vertigem da capa, onde uma mulher suspensa num baloiço sobre a Terra é empurrada pelos ventos do cosmos.
A solo, Hammill construiu uma obra longa e diversificada, em registos sempre servidos por vocalizações únicas, entre o grito e o gemido ou massacradas pelo ácido da electrónica do inferno, como na câmara de tortura de “Magog (In Bromine Chambers)”, em “In Camera”, monumento mais alto e acabado da sua obra, ponto limite e coincidente do humano com o transcendente, o grito de desespero final, a súplica e o orgulho do último herdeiro dos grandes românticos do século XX.
Em Peter Hammill cruzam-se múltiplas experiências e caminhos de procura dessa modalidade difícil que é o ser humano, registados numa discografia que deixou marcas e cicatrizes: “Fool’s mate” e a procura da juventude perdida, “Chameleon in the Shadow of the Night” e “The Silent Corner and the Empty Stage”, sangue e alucinações, o artista devorado pela sua visão, jogos de poder, “Nadir’s Big Chance”, avô de todos os “punks”, “Over” e o amor, o amor inteiro desbaratado em desencontros, “The Future now”, “Ph7” e “A Black Box”, a obra modernista a preto e branco, a janela aberta desta feita para o mundo de fora, viagens aéreas, metáforas sobre o homem algébrico, prisioneiro dourado do admirável mundo novo.
Depois, infelizmente, tem sido a queda progressiva, esse “longo adeus” já antes anunciado pelos seus companheiros de aventura – de “Sitting Targets” ao recente “Fireships”, passando pela manipulação de computadores de “Spur of the Moment” (com Guy Evans) e a ópera “The Fall of the House of Usher”, inspirada no conto homónimo de Edgar Allan Poe, em gestação durante mais de 20 anos e que, finalmente, se revelou aquém das expectativas. Seja como for, valerá decerto a pena assistir ao vivo, nos dias 17 e 18 de Junho no São Luiz, em Lisboa, a este teatro da crueldade centrado numa só figura e nas suas infinitas máscaras.

Dias 17 e 18 Junho, às 22h00, São Luiz

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