SÁBADO, 24 NOV 2001
Um
colóquio para o fado
CONCERTO HOJE À NOITE
O fado e os seus intervenientes foram objeto de estudo, discussão e
alguma polémica na Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa
O fado está na ordem do dia.
Durante três dias, a Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa, em Lisboa, levou a
cabo o 1º Colóquio Internacional do Fado, que hoje termina com o sexto e último
painel da ordem de trabalhos e teve como intervenientes investigadores, músicos
e o próprio público inscrito que praticamente encheu o auditório.
Falou-se
do fado, de onde ele veio ou de onde se pensa que poderá ter vindo. Em todos os
quadrantes geográficos o fado parece reivindicar direitos, mais ou menos
legítimos. Discutiu-se fado, em bases académicas e científicas, tanto como na
palavra inflamada dos seus principais protagonistas, os fadistas, que na tarde
se ontem se fizeram representar numa mesa-redonda por Maria Armanda, João
Braga, Carlos Zel e Rodrigo, e o guitarrista José Pracana.
Destacar, por
um lado, a universalidade do fado – “Reminiscências da cultura árabe na música
portuguesa”, “O género portuário” e “O fado nos testemunhos dos viajantes
estrangeiros no Brasil” foram três dos tópicos abrangidos pelo painel inaugural
do colóquio, “As Origens do Fado” – e, por outro, a sua relação umbilical com a
cidade de Lisboa, fora as traves mestras deste colóquio. Uma das fontes citadas
pelo musicólogo Rui Vieira Nery, na sua intervenção, “O fado nos testemunhos
dos viajantes estrangeiros no Brasil colonial”, descreve mesmo o fado como
“sensual e voluptuoso, encenando uma cena de sedução que imita as danças
africanas”…
Situação
impensável, esta de se debater o fado, se recuarmos duas décadas no calendário,
quando o fado era sinónimo de situacionismo retrógrado, com conotações evidentes
com o regime político anterior ao 25 de Abril. Por demais se agitou a bandeira
dos “três efes”: fado, Fátima e futebol. Hoje sabe-se que a história não era
bem essa, ou foi mal contada. Como o folclore, o fado foi na época do
salazarismo desvirtuado e usado como forma de propaganda de uma ideologia que
pretendeu fazer coincidir conservadorismo e tradição (depois do 25 de Abril o
erro consistiu em identificar tradição com reacionarismo…). Conceitos que, em
ambos os casos, são absolutamente distintos na sua essência.
Mas não se
pense que o fado gozou de vida fácil no tempo da ditadura. Foi preciso chegar
Amália para se assistir á dignificação de um género musical até então
vilipendiado e remetido para o caixote das músicas menores.
De “rasca”,
“abjeto” e “avinhado”, cantado por “rameiras” ou “mulherzinhas aos ais”, como
lembrou Appio Sottomayor, jornalista e investigador, no âmbito do painel II do
colóquio, “As Vivências do Fado na Cidade de Lisboa”, e citando as palavras de
Luís Moita, um velho poeta de Lisboa, o fado, “sem guerras nem frentes de
resistência”, foi progressivamente conquistando adeptos e largando o lastro das
ideologias gastas. Hoje, mais do que aceite, o fado virou moda, e o desprezo
deu lugar ao louvor.
Música do mundo
Ainda assim, não são concordantes
algumas das vozes de quem o canta. Durante o debate de ontem, perspetivaram-se
dois modos distintos de olhar o fado. Para os mais tradicionalistas, como
Rodrigo, o fado é e deverá ser o que sempre foi, modalidade tradicional
arreigada a preceitos e formas de composição específicos. “Strangers in the
night”, cantado com o arrebatamento e técnicas de interpretação fadistas,
bastaria para o transformar num fado? Foi a questão que Carlos Zel lançou à
consideração da mesa. Houve ainda quem, como Rodrigo ou Maria Armanda,
questionasse a validade de as novas fadistas cantarem os mesmos fados que a voz
de Amália imortalizou e que consideram “versões definitivas”.
Para
os progressistas, como João Braga, pelo contrário, o fado é essencialmente
expressão e interpretação, encontrando equivalências e insuspeitas
cumplicidades com praticamente todas as músicas do mundo. Problema que não se
coloca nas casas de fado, onde a oferta se dirige em primeiro lugar ao turista
e o amor pelo fado e a boémia cedem aos ditames do lucro fácil
João
Braga alertou para a necessidade de uma mudança radical do sistema, visando
acabar com o método, generalizado, dos “três fadinhos seguidos de intervalo
para se beber mais um copo e assim fazer aumentar a conta, mais três fadinhos,
e novo intervalo de consumo”.
Opiniões
divergentes que não invalidaram um objetivo comum: levar o fado a um número
cada vez maior de pessoas, adaptando-o, sem o desvirtuar, aos tempos que
correm.
Porque,
afinal, o importante será, ainda e sempre, haver quem saiba e sinta cantar o
fado como se fosse tudo. Quando Amália, Carlos Ramos, Teresa de Noronha ou
Manuel de Almeida cantavam o fado, o mundo calava-se. Quando Mafalda Arnauth ou
Camané cantam o fado, o mundo cala-se. Ouvir a voz que vem de dentro,
comover-se com ela, cantar-se a si próprio, eis o que verdadeiramente importa.
Foram
cerca de 60 as inscrições, número que, segundo Sara Pereira, demonstra o êxito
do colóquio. Para a gestora da Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa,
representa o “culminar de três anos de atividade e de trabalho em torno da
investigação, da promoção e da divulgação do fado”. Três anos de atividade que
fizeram da Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa uma espécie de santuário do
fado, onde acorrem fadistas, simplesmente para “conversar” ou para atuar no
auditório do instituto.
Hoje
à noite, pelas 22h, Amina Alaoui dará um concerto de música marroquina, na Sala
Santiago Alquimista, do IFICT (R. de Santiago, 19). Oportunidade para escutar
ao vivo a música que preenche o álbum “Alcantara”. Talvez outro fado, já não
género musical, mas estado de alma.
CINCO ÁLBUNS DE SEMPRE
Alfredo Marceneiro: The Fabulous Marceneiro (1960)
Amália Rodrigues: Amália Rodrigues (1962)
Maria Teresa de Noronha: O Melhor de Maria Teresa de Noronha (1988,
gravações originais efetuadas entre 1961 e 1972)
Carlos do Carmo: Um Homem na Cidade (1977)
Manuel de Almeida: Eu Fadista me Confesso (1987)
CINCO ÁLBUNS DO PRESENTE
Camané: Esta Coisa da Alma (2000)
Mafalda Arnauth: Esta Voz que me Atravessa (2001)
Cristina Branco: Corpo Iluminado (2001)
Ana Sofia Varela: Ana Sofia Varela (2001)
Kátia Guerreiro: Fado Maior (2001)
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