Pop Rock
1990
DIZ-ME ESPELHO MEU:
HÁ ALGUÉM MAIS GÉNIO DO QUE
EU?
PREFAB SPROUT
Jordan: The Comeback
LP,
MC e CD, CBS, distri. CBS
Incensa-se
o homem e a sua genialidade como compositor. Ele próprio não se faz rogado,
proclamando bem alto não ser necessário procurar mais o novo messias da música
pop. Ele, Paddy McAloon, levará à terra prometida o rebanho tresmalhado dos
“songwriters” confundidos e em busca de luz. Ele é o mestre, o resto do mundo
uma procissão de discípulos, com os mais exaltados à frente, brandindo o
“Melody Maker” e o “New Musical Express”, anunciando a boa nova, a descida à
terra do deus das canções imaculadas.
Olhando-se
para a fotografia do homem, na capa de “Jordan: the Comeback”, não se lhe
adivinham as tendências messiânicas. A pose é altiva, certo, o olhar perdido na
contemplação das ideias musicais, o caracol do lado direito da cabeça voltado
para o céu, sugerindo talvez a antena que lhe serve para receber a inspiração
cósmica. O olho do mesmo lado, oculto no negrume, simbolizando o nigredo
alquímico, fundamental para a gestação da “obra”. Mas, no todo, a imagem que
fica é a de uma figura sóbria, “clean”, de aspecto saudável e inteligente.
“Jordan” é
a sua mais recente contribuição para a arte musical do nosso século: mais de
uma hora (não fez a coisa por menos) de música, distribuída por dezanove
canções, em que canta temas tão diversificados como “o amor”, o Amor ou
simplesmente o amor. Claro que não desce ao nível do “I love you babe” dos seus
colegas de ofício menos instruídos, para quem o tema se reduz à beijoca da
praxe e às atividades que por vezes se lhe seguem, de índole variável mas
geralmente agradável, ou aos desencontros e grandes dores morais provocados
pelo amor platónico, que, segundo a sapiente definição, “como tónico que é,
serve para abrir o apetite”. No caso de Paddy, o motor que faz andar o mundo,
desenrola-se sempre em cenários grandiosos e exóticos como a Atlântida, Ibiza,
o Harlem ou, mais grave ainda, nas recônditas profundezas da alma humana. As
personagens são Deus (nas letras mais autobiográficas), Lúcifer, Galileu, o rei
David, tudo gente de meter respeito. A Jesse James dedicou uma sinfonia e um
bolero.
Por estas
e por outras, se vê que, do ponto de vista poético, estamos perante um génio.
Há tiradas grandiosas do tipo “se procuras a Atlântida, devias deitar um olhar
cá para o rapaz” (tradução livre dos primeiros versos do tema que abre o
disco). E, se ele, Paddy, é o exemplo do amante ideal, não admira que “o mundo
inteiro ame os amantes”. Mas não se desconsidere mais o rapaz, deixe-se o tom
irónico e reconheça-se que, por este lado, até não há muitas razões de queixa,
se compararmos o estilo com a alarvidade patente na maioria dos produtos que
usurpam desavergonhadamente o estatuto de “canção”.
Passe-se então
para a música propriamente dita, para os sons, para o “tataratata”, que é, no
fim de contas, o que faz vibrar o tímpano do auditor. Paddy McAloon possui uma
voz doce, daquelas que pulverizam todas as defesas erguidas pelo raciocínio mal
intencionado ou a sensibilidade empedernida. É mais do tipo “lalarilolé” do que
“tataratata”, insinuante, deslizando por entre os instrumentos, elegante,
límpida, soletrando bem cada palavra, cada sílaba, mesmo as mais difíceis.
Chega a parecer sobrenatural o modo como consegue cantar de seguida as dezanove
canções, sem nunca se enganar. Proeza só ao alcance dos eleitos. O que incomoda
um pouco é o facto de todas elas se assemelharem bastante entre si. À quinta é
provável uma ligeira sugestão de monotonia. À décima fica-se completamente
sugestionado. À décima nona compreende-se finalmente a intenção do mestre em
demonstrar uma unidade conceptual indestrutível.
Volta-se a
ouvir o disco e, postos a funcionar os mecanismos psíquicos impeditivos do
sono, reconhece-se finalmente que sim, que sim, que “Jordan” é uma obra-prima,
um portento de originalidade, Paddy McAloon já há muito devia habitar o Olimpo,
ao lado dos seus pares. Os pobres, os miseráveis excêntricos como Peter
Blegvad, Anthony Moore, R. Stevie Moore, Fraser, Edward Ka-Spel, que ousam
escrever canções “esquisitas”, inspiradas sabe-se lá por que terríveis
divindades pagãs, e desafiar os “consagrados”, deviam ajoelhar e pedir perdão
pela ousadia. E agradecer a Paddy (os outros, Wendy Smith, Neil Conti e o irmão
Martin, quase nem contam) os ensinamentos proporcionados por este autêntico
compêndio de “canções pop, que desprezam as modas e para as quais vender é
secundário”.
Apesar de
tudo, no fim, fica-se com a impressão incómoda de que o estendal de maravilhas
se deve essencialmente ao trabalho do senhor da produção, um tal Thomas Dolby,
que aqui se desdobra numa série de milagres, inventando luxuosos revestimentos
sonoros para cada um dos dezanove quadros encenados. Ao vazio melódico e
repetitivo de muitas das canções (propositado, claro), responde Dolby com
outro, aparente, construindo, a partir de uma discreta mas complexa utilização
das possibilidades oferecidas pelo estúdio, uma sucessão de reflexos e
refrações, cintilações ofuscantes, fazendo da voz de Paddy um brinquedo
passível de subtis transformações, acrescentando a cada canção o toque de uma
harpa, um eco final, a pulverização da estrutura instrumental convencional. O
génio encontra-se frequentemente onde menos se espera.
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