Pop Rock
26 de Junho de 1996
world
26 de Junho de 1996
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Cumprir a Norma
NORMA WATERSON
Norma Waterson (8)
Hannibal, distri. MVM
Desde as primeiras notas de “Black muddy river”, o tema de abertura, escrito pelo Grateful Dead recentemente falecido, Jerry Garcia, que percebemos estar diante de um daqueles álbuns que hão-de perdurar por muitos e muitos anos. “Norma Waterson” é o primeiro disco a solo desta senhora cujo nome se confunde com a lenda na “folk” inglesa e que até agora se confinara a cantar num dos colectivos mais antigos da tradição desta ilha, os Watersons (dos quais também faz parte o seu marido Martin Carthy, outra instituição) ou, mais recentemente, em família, com Martin e a filha do casal, Eliza Carthy, no fabuloso “Waterson: Carthy”. O reportório, na maioria preenchido por versões de temas alheios, funciona de certa forma como um complemento da veia tradicionalista de “Waterson: Carthy”, com a particularidade de dar a conhecer o lado mais plástico e dramático, carregado de diversas “nuances” emocionais, da voz de Norma Waterson.
Há aqui uma sabedoria e uma experiência acumuladas que, juntas, resultam em pura magia. Como resulta igualmente perfeita a combinação da voz com a guitarra de Richard Thompson, num tema da autoria deste último, “God loves a drunk”, sombras e luz, o desespero habitual do ex-Fairport Convention transportado nas asas da ternura da cantora. Thompson é a presença instrumental mais forte que se faz sentir nesta viagem de Norma Waterson pela escrita de autores como Billy Bragg, Elvis Costello, Fred Fisher, Ben Harper, Lal Waterson e John B. Spencer com Graeme Taylor, um ex-Gryphon, além dos já citados Jerry Garcia e Thompson e de uma composição da própria cantora, “Hard times heart” e um tradicional. Martin Carthy, Eliza Carthy, Roger Swallow e Danny Thompson completam o grupo de músicos participantes.
Se Maddy Prior e June Tabor são hoje as mais legítimas representantes da sofisticação e do apuro técnico do canto inglês de raiz tradicional, Norma Waterson simboliza e incarna a expressividade e o sentimento, a voz esculpida pelos anos até ter adquirido um “bouquet” de sugestões e sentimentos que apenas a passagem do tempo consegue conferir. Os temas falam quase todos de experiências dolorosas, de cicatrizes deixadas pela vida, de becos e vielas do amor, mas a música flui com a tranquilidade de um rio antigo, desde as águas onduladas de “There ain’t no sweet man that’s worth the salt of my tears”, escrito em 1965 por Fred Fisher, numa evocação dos dias da rádio, até ao hino “Pleasure and pain”, de Ben Harper.
Uma descida iniciática às profundezas do canto e da memória, entronizada na miséria sublime de “God loves a drunk” (“Deus ama o bêbedo, o mais baixo dos homens/ como os cães vadios e os porcos na pocilga/ mas um bêbedo apenas tenta libertar-se do seu corpo/ e paira nos ares como uma águia voando alto no paraíso…”) mas também em oração, no tradicional “There is a fountain in Christ’s blood”. E se o calor e a doçura da voz de Norma podem induzir os mais incautos ao sonho, não nos iludamos: a guitarra de Richard Thompson nunca se esquece de nos entornar para cima as suas vagas delicadas de ácido e metal.
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