03/06/2008

O fruto amadurecido [Kate Bush]

Pop Rock

27 OUTUBRO 1993

O FRUTO AMADURECIDO

No princípio era a voz e uma presença que provocavam arrepios, de uma adolescente de 19 anos a voar na vertigem do “Monte dos Vendavais” (“Wuthering Heights”), das irmãs Brontë. Com a passagem dos anos, Kate Bush cresceu e desceu do alto do monte. As danças eróticas de fada deram lugar à possessão por um par de sapatos vermelhos. Em “The Red Shoes”, o novo álbum, o fruto proibido abriu-se em fruto amadurecido.

Passaram 15 anos desde que Kate Bush espantou o mundo com um álbum de estreia avassalador, “The Kick Inside”, considerado por muitos uma das obras marcantes do final dos anos 70. Nele impressionava em primeiro lugar a voz, aguda e sensual, de uma jovem que projectava a imagem típica da mulher-criança, ao mesmo tempo inocente e perversa. De “The Kick Inside” emanava uma aura perturbante de sexualidade, que, de faixa para faixa, se manifestava desde a alusão poética mais ou menos camuflada, a uma linguagem explícita dos corpos e das suas pulsões.
Foi sempre assim e cada vez com mais força, pelos álbuns seguintes. Junte-se esta energia que saía directamente do corpo e dos seus movimentos – da voz à expressão corporal, que Kate Bush sempre desenvolveu – a uma capacidade de experimentação com os sons rara numa artista da sua idade e teremos a media exacta do seu talento.
“Lionheart” e “Never for Ever”, respectivamente de 1978 e 1980, enveredavam por um lado mais misterioso e onírico, tipicamente inglês, influenciado pelos poetas românticos e pela mitologia celta, povoada de seres fantásticos – fadas, duendes e todo um bestiário de monstros, que conviviam sem problemas com os humanos. Kate Bush transfigurava-se e adquiria as formas do leão, em “Lionheart”, enquanto em “Never for Ever” entrava directamente no cenário da fábula uma “Lucy in the sky”, bucólica e misteriosa, a acenar de dentro de um sonho.

Arquétipos do feminino

Em “The Dreaming”, álbum de 1982, Kate Bush assina, quanto a nós, o seu melhor trabalho de sempre. Obra de múltiplas experiências, quer ao nível formal, quer ao nível emocional, nela a cantora usa a voz da mesma maneira que uma actriz, encenando com minúcia cada canção, fazendo assomar à superfície os medos, os desejos e os arquétipos de uma feminilidade que, álbum após álbum, se tem vindo a declarar de forma cada vez mais explícita.
Feminista no sentido profundo do termo, na descoberta do ponto interior onde o “feminino” transcende a dualidade dos sexos, Kate Bush canta, em metáforas por vezes demasiado conotadas com uma perspectiva psicanalítica, (as figuras do pai – sobretudo em “The Dreaming” – e da mãe, cuja morte recente ensombra “The Red Shoes”, estão quase sempre presentes, o que, de resto, ela não esconde), o amor em todas as suas variantes possíveis: o amor-paixão, o amor-amizade, o amor platónico, o amor filial, o amor fraternal, o “amor” em solitário…
“Hounds of love”, com a fotografia dos cães que se imagina libidinosos, e “The Sensual World”, inspirado numa novela de James Joyce, prolongam e definem a imagem de uma artista empenhada em decifrar os mais íntimos mistérios da sua alma, que, como se sabe ou deveria saber, numa mulher anda por natureza ligada ao corpo. Só assim se compreendendo, de resto, a importância concedida desde sempre por Kate Bush à dança, ao movimento corporal que, em simultâneo, desencadeia os movimentos da “anima”. Nesse rodopio total, em espiral, se tem desenvolvido o percurso evolutivo da intérprete. E quanto mais o corpo e a alma rodopiam, mais o fogo da sensualidade vem ao de cima.
O ritmo, o batuque e o transe ganham terreno nestes dois discos. A este aumento da pulsação sanguínea não é alheio o encontro com Peter Gabriel, com quem Kate encetou desde 1986 uma colaboração regular. Como ela, também o ex-Genesis procura a natureza andrógina perdida. Veja-se, sob esta luz, os corpos dos dois, enlaçados num amplexo que dura o tempo de um eclipse, nesse original e estranhíssimo vídeo que é “Don’t give up”. Repare-se ainda no que Gabriel diz em “Blood of Eden”, uma das canções do seu disco mais recente, “Us”…
Aliás, é preciso dizer que a música de ambos se assemelha cada vez mais. Aproximação recíproca que, num e noutro, parece infelizmente caminhar no sentido da normalização. ”The Red Shoes”, não o escondamos, padece deste sintoma.

Enganar o tempo

Por outro lado, acentuou-se o apelo antigo pela coreografia das imagens e dos sentimentos. Kate Bush encena-se a si própria, às suas histórias e obsessões, desmultiplicando-se em “clips” que mostram as transformações que o tempo inscreveu no seu corpo. Ao mesmo tempo que as iludem, num simulacro de eternidade. O cinema, pois claro, essa fantasia do diabo que altera, para melhor manipular, os fluxos do real. Como a máquina de “Cloudbursting”, com Donald Sutherland, que altera os padrões do céu. E o que haverá para ver no vídeo que acompanha o novo álbum, “A Lion, A Cross and A Curve”, contando com as interpretações de Miranda Richardson e Lindsay Kemp.
Se em “The Sensual World” Kate Bush ainda dança livremente entre as florestas e as criaturas da noite, em “The Red Shoes” a dança, da qual a cantora se manteve afastada durante alguns anos, parece forçada, resultante do encantamento de um par de sapatos vermelhos, numa alusão directa ao filme do mesmo nome, realizado em 1948 pelo cineasta britânico Michael Powell. O mistério de outrora perdeu-se. Diz-se que a adolescência é a fase da vida em que o sonho se cruza com a realidade. Em que os espíritos tomam o lugar e a voz dos indivíduos. Em que os planos se confundem. Assim aconteceu com Kate Bush. Aos 35 anos de idade, essa magia perdeu-se ficando em seu lugar uma respeitável matrona inglesa, a fazer exercícios de ginástica aeróbica com a memória.

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