Sons
2
de Janeiro 1998
Gaiteiros
de Lisboa falam de “Bocas do Inferno”
A tradição é uma sandes de presunto
Com o seu segundo álbum,
“Bocas do Inferno”, os Gaiteiros de Lisboa elevaram a fasquia relativa ao modo
de fazer uma música que, por enquanto, não dispensa o material tradicional,
embora olhe para ele como “um camponês olha para um porco gordinho, como
presunto e toucinho”. “Bocas do Inferno” foi justamente considerado pelo Sons,
um dos melhores álbuns portugueses do ano. Três dos Gaiteiros, Carlos
Guerreiro, José Manuel David e Rui Vaz, explicaram o que mudou no grupo, na
passagem da barbárie para o Inferno.
Entre críticas
à produção do álbum de estreia e a satisfação do novo disco estar a vender-se
bem, os Gaiteiros mudaram de atitude e de métodos de trabalho. Ou melhor, a
diferença de um para outro disco é que agora têm um método de trabalho.
PÚBLICO – Assumiram uma mudança de atitude e de processos
criativos neste novo álbum?
CARLOS
GUERREIRO – Passou a haver um maior equilíbrio de energias no seio do grupo. A
criação, embora repartida, obriga a certa altura a não perder mais tempo. Isto
tem a ver com o facto de o José Manuel David e eu passarmos a ser um crivo de
todo o trabalho criativo do grupo. Digamos que fomos mandatados para darmos a
última palavra. Foi o que fizemos, em termos de produção, direcção musical e
direcção de estúdio. Se calhar, o que se nota neste disco é uma maior
uniformidade de atitude. O outro disco foi gravado de forma extremamente
descontínua, As vezes debaixo de uma grande tensão e nem sempre nas melhores
condições. Neste, nota-se o reflexo de um certo conforto em estúdio.
RUI VAZ – Houve
processos muito diferentes. Quando acabámos o outro disco, o espectáculo ao
vivo já estava feito. Neste momento, passa-se o inverso. Tem que se construir
um espectáculo a partir do disco.
FM – Em termos de arquitectura musical, “Bocas do Inferno” é
um disco bastante mais barroco que “Invasões Bárbaras”...
R. V. – No jazz
acontece uma coisa semelhante. Há a improvisação, mas também houve sempre outra
parte: os Duke Ellingtons que escreviam os temas e os orquestravam. No
princípio, todos os temas dos Gaiteiros foram construídos a partir de uma
improvisação colectiva. Mas quando um tipo está fechado em casa a pensar no que
vai fazer e a arquitectar uma determinada estrutura sem ter ninguém que lhe dê
na cabeça, é natural que haja coisas que saiam mais complexas...
JOSÉ MANUEL
DAVID – ... a arquitectar a partir do seu enquadramento pessoal. É assim,
faz-se um tema em casa: “É pá, tenho aqui um tema porreiro!” Depois levamo-lo
ao colectivo e há sempre uma discussão: “Então e se fosse antes assim?” Para
este disco, tivemos um orçamento mais reduzido, tivemos menos tempo, sendo
obrigados a trabalhar de uma maneira em que eu e o Carlos tínhamos que
responder pelas coisas. No outro disco, isso não se sentia tanto.
C. G. – No
disco anterior, também tivemos uma disponibilidade maior, em termos de grupo. A
malta ia manifestamente para o estúdio experimentar, gravar e ouvir as vezes
que fossem precisas. Andámos assim durante três meses. Neste momento, nenhum
dos elementos teria a disponibilidade para voltar a passar por essa “via
sacra”.
R. V. – Tentávamos
gravar a todo o custo, mas acabámos por despender muito tempo para fazer muito
pouca coisa.
C. G. – Com
esse tempo, tínhamos gravado um triplo-álbum...
P. – Toda a apresentação do disco e mesmo alguns títulos dos
temas apontam para uma preocupação vossa em mostrar os instrumentos, alguns
deles bastante estranhos, que utilizaram. É o lado didáctico dos Gaiteiros?
C. G. – A capa
foi idealizada por mim. Lembro-me que, quando comecei a ouvir discos de música
mais esquisita, como aquelas edições de Le Chant du Monde, uma das coisas que
me dava um gozo imenso era pegar na capa. Inclusivamente, foi a partir de algumas
dessa capas que comecei a construir os meus primeiros instrumentos, como
flautas de Pã, afinadas como lá vinha. É importante as pessoas perceberem o que
é que está a produzir determinado som. Se não, bastava pôr a marca do
sintetizador...
P. – Não são poucos os instrumentos que utilizaram...
J. M. D. –
Vinte e cinco! A sala de ensaio é um bocado como um museu. Até com instrumentos
que nunca utilizámos.
P. – A escolha para cada tema deve ser difícil...
J. M. D. –
Seria mais fácil se tivéssemos uma formação do tipo rock, com vocalista,
guitarras, uns teclados, um baixo e uma bateria, cada um a tocar só aquilo.
C. G. – O que
eu acho milagre é, por exemplo, os Rolling Stones conseguirem viver há 30 anos
sempre a tocar os mesmos instrumentos! Mas isto também tem a ver com outra
coisa. A música é um bicho que se pode agarrar por muitos sítios, pelos cornos,
pelo rabo, pelas patas, pela pele, pelo lombo... A nossa atitude não tem nada a
ver com a da maior parte dos outros músicos.
P. – Por onde é que vocês agarram?
J. M. D. –
Pelos cornos! Uma pega como aquelas lá da minha terra, Vila Franca. Fazer o que
fazemos, com os instrumentos que construímos, com os problemas todos que eles
criam, porque não são instrumentos comprados em lojas, não é fácil. Não podemos
ir ter com o representante e dizer: “Então esta merda não funciona?” No nosso
caso, o representante é o Carlos.
P. – Menos a trompa, que foi comprada numa loja, não? Ou
também já pensaram em desmontá-la e montá-la de outra maneira?
C. G. – Já
pensámos em endireitá-la! [risos]
P. – Curiosamente, o álbum coloca uma ênfase muito forte nas
vozes. Trabalharam-nas de forma diferente, em comparação com o disco de
estreia?
C. G. – A
diferença profunda, em termos de método de trabalho, foi termos tido um método
de trabalho! [risos] O outro disco, entregámo-lo a um produtor [N.R. : José
Mário Branco] que acabou por nos desiludir um pouco, já que não produziu nada.
Foi um trabalho com ausência de produção.
P. – Continuam a respeitar as raízes tradicionais que, afinal
de contas, ainda constituem a base de muitos dos temas do novo álbum?
J. M. D. – O
“background” está lá. Não somos um grupo de música tradicional, nem nunca
dissemos que éramos. Mas esse “background” permite-nos andar em torno dessa
música com alguma segurança.
P. – Ainda ouvem discos ou gravações de recolhas
tradicionais?
C. G. – Sim.
Por exemplo, pego numa cassete de música de Trás-os-Montes e vejo o que é que
há ali. Normalmente, aproveito logo o primeiro tema que ouço. No fundo, do que
precisamos é de uma espécie de excipiente, de um corpo para vestir. As ideias
que estão implícitas nessas recolhas fazem logo saltar uma quantidade de
coisas. Para mim, da música tradicional, qualquer coisa serve.
R. V. – Chegámos
à música tradicional pela via complicada. Já tínhamos uma série de coisas na
cabeça. Quando ouvimos temas tradicionais, o que nos encanta mais são os seus
elementos mais estranhos, mais fora do convencional.
C. G. – Eu
olho para a música tradicional como um camponês olha para o seu porquinho,
quando ele já está gordinho: presunto de um lado, toucinho do outro! [risos]
P. – Em “Bocas do Inferno” as gaitas-de-foles têm um papel
mais discreto do que no álbum de estreia. Será que começa a fazer pouco sentido
a designação do grupo?
R. V. – Costumo
dizer que nos chamamos Gaiteiros de Lisboa porque em Lisboa não há gaiteiros.
Acontece uma coisa engraçada na Galiza. O nome “gaiteiro” desencadeia logo algo
na Galiza que não tem nada a ver connosco. Isso tanto pode funcionar a nosso
desfavor como a nosso favor. Mas há quem na Galiza já ouça a nossa música como
ela deve ser ouvida, uma música de pessoas que não se preocupam muito com a
afinação, mas sim em não tocar sempre a mesma “muiñeira”.
P. – Já têm algumas indicações sobre as vendas de “Bocas do
Inferno”?
C. G. – Já se
venderam dois mil, ao fim de três semanas. As “Invasões Bárbaras” venderam
cinco mil em dois anos...
P. – Depois da barbárie, o Inferno. Fizeram algum pacto com o
Diabo?
J. M. D. –
Talvez, metaforicamente. Para este disco, não. Mas para o próximo talvez venha
a ser chamado mesmo.
C. G. – Devíamos
pedir um subsídio para o disco ser vendido juntamente com aquelas acendalhas
para lareira, “Lúcifer”! [risos]
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