Sons
1 de Outubro 1999
1 de Outubro 1999
Dulce Pontes fala de “O Primeiro Canto”, o seu álbum mais recente
Barro doce
Liberta das lágrimas do fado, Dulce Pontes renovou a sua imagem e a sua música. No seu novo álbum, “O Primeiro Canto”, cobriu-se de barro, despiu-se da electrónica e das roupas para encontrar a nudez essencial do canto, expresso nos quatro elementos e numa busca insaciável de novas sonoridades.
Kepa Junkera, Myrdhin, Anders Norudde (dos Hedningarna), Justin Vali, Wayne Shorter, Trilok Gurtu, Jacques Morelenbaum, Maria João e Waldemar Bastos participam todos no novo álbum de Dulce Pontes, “O Primeiro Canto”. Dulce Pontes explicou ao PÚBLICO a sua aproximação à “world music” e a redescoberta de si própria. Através da nudez – do corpo, da alma e da voz.
PÚBLICO – Como é que conseguiu juntar tanta gente importante para participar neste disco?
DULCE PONTES – Os nossos caminhos cruzaram-se, numa ou noutra altura. Identifiquei-me com o tipo de linguagens que todos eles desenvolviam. Apareceu primeiro o conceito, a composição dos temas e, a partir daí, surgiu a ideia concreta do tipo de sonoridades que queria ouvir. Fui estabelecendo os contactos…
P. – Em “É tão grande o Alentejo” juntou um didjeridoo australiano, uma gaita-de-foles sueca e o cante alentejano dos Ganhões de Castro Verde. Combinação, no mínimo, pouco vulgar, não acha?
R. – A ideia inicial previa apenas o didjeridoo mas achei que não funcionava por si só. Quando o Anders chegou ao estúdio e ouvi o timbre da gaita-de-foles, senti que era isso mesmo que fazia lá falta.
P. – Qual a função dos quatro elementos no contexto de “O Primeiro Canto”?
R. – Serviram como fio condutor de uma busca – o regresso a uma certa origem, a uma nudez essencial que está presente em todas as coisas e em todas as pessoas. Ao mesmo tempo tem relação com outro tipo de busca, de sonoridades ligadas ao vento ou à água, por aí fora, até tentei transmitir o som das pedras. Ligações a um lado cultural mas também telúrico. Como encontrei, por exemplo, nos Ganhões de Castro Verde, na força da sua ligação à terra.
P. – Esse processo foi um retrocesso, um andar para trás até à fonte?
R. – Foi um processo intenso, continua a ser, é um processo de uma vida inteira. É fácil estabelecer relações esotéricas neste álbum mas não foi isso que pretendi. Claro que há algum esoterismo inerente mas não foi premeditado. É unicamente a procura de uma certa nudez.
P. – Dedica um dos temas do álbum, precisamente o título-tema, a José Afonso. Até que ponto ele foi importante para a génese deste disco?
R. – Pode fazer-se um paralelo entre os métodos que ele utilizava e os que segui neste disco. E aprendo sempre, cada vez que ouço os seus discos. Aprendo, sobretudo, uma atitude perante a vida que se transmite através da música.
P. – É verdade que fez gravações de campo antes de entrar em estúdio?
R. – Sim, andei por Miranda-do-Douro, Sendim, por Idanha-A-Nova, Castro Verde. Mas acabei por não aproveitar grandes coisas. Pretendo desenvolver com ele um trabalho relacionado só com folclore. Quando parti para essa pesquisa já tinha a maioria dos temas compostos e senti, em relação ao trabalho de campo, que até acabava por haver uma riqueza menor em comparação ao que tinha recolhido.
P. – Até que ponto é que este disco determinou uma diversificação dos seus registos vocais? Há mais e diferentes vozes em “O Primeiro Canto” que em todos os seus discos anteriores juntos…
R. – Tudo isso se prende com a voz ser um instrumento. Mais uma sonoridade ao serviço do todo. Foi também uma busca da delicadeza, não só da força. Consegui com este tipo de sonoridade diferentes “nuances” e formas de interpretar, antes era mais difícil, com toda a parafernália electrónica. Era mais pela força. Comecei a sentir que era muito mais fiel a mim própria havendo mais espaço para a voz.
P. – “Modinha das saias” é um canto a três entre si, Maria João e a cantora lírica Gemma Bertagnolli.
R. – Encontrei Gemma Bertagnolli nos espectáculos que fiz com o Ennio Morricone, em Roma. Houve uma grande empatia, ficámos no mesmo camarim. Quanto à Maria João, já a admiro há muito tempo e sempre tive vontade de trabalhar com ela. Fiz a “Modinha das saias” quando ia a caminho de Miranda, a pensar numa imagem que o Tó Pinheiro da Silva me descrevera: um vulcão na ilha Graciosa em cuja cratera a luz entra numa determinada perspectiva e onde existe uma reverberação de onze segundos. Não sei porquê, pensei em nós três naquele sítio. Gravámos as três ao mesmo tempo, nada de “takes” separados.
P. – A presença neste disco de tantos convidados ilustres vai facilitar-lhe a entrada no mercado da “world music”? Kepa Junkera já a convidou para “Bilbao: 00h00”. Podem seguir-se mais convites…
R. – Mercado com o qual me identifico muito, muito mesmo. Estou a lembrar-me de uma jam session que fiz há uns tempos em Israel, onde estava também o Salif Keita. Cantei com irlandeses e com um grupo de percussões hindu. Ao todo, éramos para aí uns 50. Foi uma jam session “non stop”.
P. – Fez algum tipo de investigação sobre os instrumentos, alguns deles bastante exóticos, aos quais recorre no álbum?
R. – Fui fazendo viagens. Em relação ao Carlos Blanco Fadol, por exemplo, foi uma coincidência muito gira. Ele apareceu, de repente, no ensaio do concerto que eu fiz cá com a Cesária Évora e a Marisa Monte, a dizer que tinha 1800 instrumentos à minha disposição. Ele tem um museu de música étnica em Alicante, constrói instrumentos, já escreveu livros. A coincidência máxima foi ele ter-me dito que andava já há algum tempo a investigar a construção de instrumentos relacionados com os quatro elementos. Nessa altura, mal ele sabia o que eu andava a fazer…
P. – Sente alguma empatia com algum instrumento em especial?
R. – Para além de a minha voz poder sentir-se mais ou menos confortável com algum instrumento, gosto do desafio, de explorar coisas diferentes. A forma como o Jacques [Morelenbaum] escreve os arranjos para solistas é fabuloso. É como se ele cantasse ao mesmo tempo. Lembro-me quando lhe mandei os demos, escrevi alguns textozinhos a explicar, às vezes de forma muito metafórica, qual era a ideia de cada um. Pensei que ele não ia perceber nada, mas não, percebeu de forma impressionante o que eu pretendia. Ele é uma grande parte deste trabalho.
P. – Quem é a figura que aparece na capa?
R. – Sou eu, coberta de barro. Estava mesmo nua. Quis transmitir a ideia de que o corpo é apenas um invólucro. A posição das mãos pode sugerir um dar e receber implícitos. Também uma espera, uma atenção.
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