17/02/2011

'Turbo junkies' [Maria João e Mário Laginha]

Sons

8 de Outubro 1999

Antes da edição de “Cor”, Maria João e Mário Laginha já tinham pronto outro álbum, gravado com a Orquestra Filarmónica da Rádio de Hanôver, “Lobos, Raposas e Coiotes”, agora editado. Ao poder que o pianista sentiu a manipular grandes massas sonoras correspondeu o desafio e o rubor da cantora. A orquestra delirou e meteu o turbo.

Maria João e Mário Laginha lançam álbum com orquestra

“Turbo junkies”


Uma vez mais, Maria João e Mário Laginha surpreenderam. Acompanhados por uma orquestra, exploraram em “Lobos, Raposas e Coiotes” novas possibilidades oferecidas pela sua música, em temas brasileiros e improvisações que ganharam novo espaço para voar. A cantora explicou ao PÚBLICO as razões físicas que, em absoluto, a impedem de usar as mesmas técnicas de Bobby McFerrin.
PÚBLICO – Porquê “Lobos, Raposas e Coiotes” e não “Chimpanzés, Gorilas e Orangotangos” ou “Papagaios, Catatuas e Araras”?
MARIA JOÃO – É um nome bonito. Não soa bem? E são animais bonitos, alguns deles em vias de extinção. É um título romântico. O Mário tocou o título-tema pelo telefone. Fez-me lembrar logo lobos, raposas e coiotes em liberdade…
P. – De quem partiu a ideia de um disco com orquestra?
MÁRIO LAGINHA – Já há muito tempo que tínhamos este desejo, mas em que a orquestra tivesse um papel diferente do habitual. Não queríamos um ou dois solistas e a orquestra por trás a servir de fundo, aquilo que, na gíria, chamamos “a cama”. Pensámos num papel mais interveniente.
P. – Ao escrever para orquestra sentiu alguma espécie de poder, por ter à sua disposição uma massa sonora de enormes dimensões?
M. L. – Pode haver essa sensação de poder mas depois fica a sensação de saber que já tanta coisa foi escrita… Tive a preocupação de não ter que ser original, ou pelo menos, de chegar à originalidade pelo lado racional, formal, pôr um fagote a fazer uns agudos e as flautas uns graves… Preferi pensar na nossa música num contexto orquestral.
P. – A Maria João estava habituada a cantar em duo, trio ou quarteto. Como é que se sentiu? Cantava com três ou quatro músicos da orquestra de cada vez e depois chamava o grupo seguinte?
M. J. – Foi assustador. Não tanto pela massa sonora, mas por ter tanta gente no palco ao mesmo tempo, com os olhos postos em mim. A cantora tem sempre responsabilidades acrescidas, está sempre à frente, a desgraçada… [Risos] Depois, detesto ensaiar e ter pessoas a assistir aos ensaios. Para mim, ao princípio, foi ter ali 90 pessoas, de outro país, que não conhecia, a olhar para o meu ensaio. Tinha o coração aos pulos.
P. – Imagino o que terá sentido nas partes em que improvisou com o seu “scat” bastante pouco ortodoxo…
M. J. – Nessas alturas foi quando me senti melhor. Bem, estive o tempo todo a corar, coradíssima. Mas é um pouco a minha característica, quando aparece uma situação difícil que tem que ser feita, vou em frente. E improvisar é a situação de que mais gosto.
P. – O maestro, Arild Remmereit, teve um papel ingrato?
M. L. – Foi porreiro. Gostava de outros tipos de música, de rock, inclusive, e cantava. Quando os outros não se entusiasmavam tanto como ele, desatava a gritar: “Men, now let’s turbo! Turbo!!”
M. J. – Até porque costuma haver sempre nas orquestras um grupinho mais conservador, com a sua rotina diária, sempre de pé atrás. Havia dois canastrões mesmo ao meu lado, muito eles falavam um com o outro. Uma delas – era mulher – dizia em alemão que parecia um “kindergarten” (jardim infantil), com o maestro aos pulos lá em cima e aos gritos: “Turbo now!” E eu a dançar, durante os solos…
M. L. – Para eles foi um mundo novo. Ela começou a improvisar e eu a tocar um compasso sete por quatro, estava complicado. Mas aquilo começou a andar, ela fez o improviso e, quando chegou ao fim, desataram todos a bater palmas. Ficaram loucos. Criou-se um ambiente de trabalho óptimo. Fizemos o disco em três dias, atendendo a que era ensaiar e gravar a seguir.
P. – Por que razão gravaram com uma orquestra alemã? Não havia orquestras portuguesas à altura?
M. L. – Para as pessoas não pensarem que houve da nossa parte snobeira, tentámos e lutámos para que fosse uma orquestra portuguesa e para que o disco fosse gravado cá. Só que ficava mais cara a orquestra e o estúdio. Os produtores ainda andaram a ver estúdios, mas os que havia, ou não cabia lá uma orquestra ou havia sempre qualquer coisa em mau estado…

Pendurados

P. – Num álbum com sete temas, dois são de compositores brasileiros: “Beatriz”, de Edu Lobo e Chico Buarque, e “Asa branca”, de Luís Gonzaga. Simples coincidência?
M. J. – “Asa branca” andava comigo há uma quantidade de tempo, já o tinha cantado a solo, em contextos muito experimentalistas. Finalmente descansou nessa forma, com o piano. Este tema, com aquele tom todo do Nordeste, é mesmo a minha cara. “Beatriz” é um amor nosso e uma das canções mais amadas no Brasil. É um primor, uma obra-prima, mas também um desafio já que exige uma extensão vocal razoável.
M. L. – Toda a gente nos perguntava em que disco é que estava “Asa branca”. O Joel Zawinul, dos Weather Report, chegou um dia ao pé de nós, entusiasmadíssimo: “Man! I love that song! This is music!” Era um dos nossos ex-libris ao vivo. Acabámos, num disco com orquestra, por fechar com este tema, em duo. Mas já estamos a pensar em fazer o próximo disco só com cantores e instrumentistas brasileiros. Gostaríamos de contar com o Gilberto Gil e o Lenine…
M. J. – Mudei de agência, na Alemanha, que passou a ser a mesma do Joe Zawinul. A primeira coisa que fizeram foi mostrar ao Joe Zawinul o “Cor”: “Ouve lá esta cantora!” O gajo ouviu e convidou-me para cantar com ele. Foi uma doidice. Vim do Senegal, passei por Lisboa, 24 horas sem dormir, parti para Colónia, para entrar em dois espectáculos filmados sobre a vida dele. Cheguei lá às oito da noite, sozinha, para ele me dizer que não tínhamos tempo nenhum para ensaiar. Limitou-se a um “See you on stage!”. Eu sem dormir, de repente desaguo naquele homem, um ídolo. Ainda pensei que ele fosse anunciar-me, eu começava a cantar e ele ia atrás de mim. Mas cheguei ao palco e mal peguei no microfone ele começou a tocar. Já anda há mais tempo nisto do que eu… [Risos] Fizemos uma coisa absolutamente sem rede. Ficou gravado e ele vai usar o material no seu próximo disco. Sem qualquer tratamento adicional. “Vamos chamar a isto ‘See you on stage’.” Ficou mesmo assim.
P. – Maria João, alguma vez encarou a possibilidade de fazer um disco “clássico”, só com canções, sem o tipo de experiências a que nos habituou?
M. J. – Chateio-me se não puder dançar com os sons, se não puder dançar eu própria. Era mortal, todos os dias cantar a mesma canção, da mesma maneira. Poder improvisar, usar a minha imaginação mais doida, é vital. Uma vez perguntei ao Mário como é que ele me definiria como cantora. Ele respondeu: “Tu podes fazer tudo!” Se me impedissem de fazer esse “tudo”, dava-me uma coisinha má. Acho que morria de tédio.
P. – Na nova versão de “Várias danças”, que já aparecia no álbum “Danças”, a Maria João faz o “número” vocal do Bobby McFerrin?...
M. J. – Isso nem vem do Bobby McFerrin. O meu primeiro inspirador foi o Al Jarreau.
P. – Nunca bateu no peito, como ele faz, para criar aquele efeito vocal?
M. J. – É que, precisamente, eu tenho peito e era capaz de ser um bocado doloroso. [Risos.] Sentir-me-ia mal ao fim de uns quantos concertos! O Bobby McFerrin imita outros instrumentos, no que é absolutamente genial, eu procuro sons vocais esquisitos, vou até onde a voz pode ir.
P. – O vídeo promocional que fizeram para este disco é bizarro, aparecem pendurados no ar a cantar e a tocar…
M. L. – O ponto de partida foi um espectáculo ao vivo semelhante, que demos no rockódromo do Caramulo, com o piano pendurado e fixo, para eu poder tocar, ela também pendurada…
M. J. – No vídeo, estou a 15 metros de altura, sobre o Tejo! Pendurada como se faz com os gatos. Fiquei com umas feridas de lado. E da primeira vez enjoei, estava excitadíssima e não tinha comido o suficiente…

Sem comentários: