Sons
1 de Outubro 1999
1 de Outubro 1999
O poder do silêncio
Depois de um álbum de canções, “Dead Bees on a Cake”, David Sylvian retoma em “Approaching Silence”, o formato experimental/ambiental que encetara em anteriores colaborações com Holger Czukay e Robert Fripp. Temas com mais de meia hora que reflectem um autor trespassado pela espiritualidade, a influência das doutrinas Zen e a vida das abelhas.
Ouvem-se como num sonho, as duas longas sequências instrumentais criadas pelo antigo vocalista dos Japan para o seu mais recente trabalho a solo, “Approaching Silence”, continuação de experiências anteriores levadas a cabo com Holger Czukay, “Plight and Premonition” e “Flux + Mutability”, e com Robert Fripp, em “The First Day” e “Damage”. Como confessou ao PÚBLICO, Sylvian leva a sua vida espiritual muito a sério. Ou nem por isso, ao admitir, a brincar, que poderia estar a caminho da loucura.
PÚBLICO – Depois de “The Secretes of the Beehive” e “Dead Bees on a Cake”, chamou ao primeiro tema do novo álbum, “The beekeeper’s apprentice”. Porquê esta insistência nas abelhas?
DAVID SYLVIAN – Tem sido um tema recorrente, é verdade, mas o seu significado não é sempre o mesmo. Em “The Secrets of the Beehive”, as abelhas eram uma metáfora sobre a comunidade da vida moderna, de uma certa forma de viver. A seguir apareceu “The beekeeper’s apprentice” editado pela primeira vez em “Ember Glance”, de 1991, numa edição limitada. Mas não se trata de um desenvolvimento consciente. “Dead Bees on a Cake” foi um título que me surgiu já no período de gravações. Ainda pensei em alterá-lo, precisamente para evitar as associações que as pessoas iriam fazer, mas acabei por não o fazer. As abelhas não são más de todo…
P. – “Approaching Silence” é o desenvolvimento lógico dos dois álbuns que gravou antes com Holger Czukay? Li que este músico desempenhou um papel importante na sua carreira…
R. – De certa forma, sim. Em 1984, fiz a banda sonora de “Steel Cathedrals”, a primeira vez que abri a minha escrita a métodos de improvisação. Isso levou-me a Holger Czukay, que já trabalhava nesta área de uma forma muito fluente desde o tempo dos Can. Abriu-me os olhos para todo um mundo novo de possibilidades. Usei esses mesmos métodos com os Rain Tree Crow. É o meu método de trabalho favorito.
P. – Referiu-se, a propósito de “Dead Bees on a Cake”, a uma “intoxicação divina”. Pode ser mais específico?
R. – É a experiência do divino, quando se mergulha no divino e se fica intoxicado por esse estado de bem-aventurança, de comunhão. Intoxicação, porque se fica inteiramente subjugado por ele, à deriva, sem hipóteses de resistência, quando somos atingidos pela iluminação.
P. – Deduzo que teve essa iluminação. Em que circunstâncias?
R. – Sim, penso que sim. Andei na companhia de vários mestres, os chamados “santos” ou avatares e experimentei com eles vários desses níveis de felicidade intoxicante. Não há palavras para a descrever. Digamos que é um amor que inunda tudo.
P. – É possível atingir esse estado com o recurso a drogas?
R. – Não, a droga, ou algumas drogas, apenas proporcionam uma imitação dessa experiência. O que, em certos casos, poderá levar ao seu consumo é um conhecimento inconsciente do êxtase e um desejo de o atingir. O problema com as drogas é que põem a pessoa fora de si, não levam verdadeiramente a um nível superior e não há qualquer espécie de controle. É preciso disciplina, ter consciência dos passos que conduzem a esse estado de abertura e, na medida do possível, fazê-lo permanecer.
P. – Os termos “disciplina” e “controle” remetem de imediato para as teorias de Robert Fripp que, precisamente, toca “frippertronics” no tema que dá título ao álbum.
R. – Robert seguiu o caminho da disciplina, tanto enquanto músico como na sua vida particular, em termos de despertar espiritual. Sem disciplina não se chega ao grau seguinte de desenvolvimento.
P. – Mas, no caso de Robert Fripp, ele seguiu as teorias de Gurdjieff e do seu discípulo J. G. Bennet. Perfilha as mesmas teorias?
R. – Há uma multiplicidade de vias, o que é necessário é sentir uma forma de empatia, paixão, entusiasmo. Gurdjieff diz muito e é útil a muitas pessoas, mas, em última análise, acabei por seguir um caminho diferente, mais de acordo com o meu temperamento.
P. – É verdade que a sua mulher, Ingrid Chavez, desempenhou também um papel em todo esse processo?
R. – Sim, sobretudo em “Dead Bees on a Cake”. É-me impossível separar a vida do trabalho. Começámos a compor juntos quando me mudei para os Estados Unidos. Escrevi nessa altura algum material para ela, mas na área do rhythm ‘n’ blues, o que se viria a reflectir no meu próprio álbum.
P. – É ela que no CD-ROM de promoção a esse álbum fala da necessidade do “eu se diluir no objecto do seu desejo” e “na verdadeira natureza do eu”. Um budista zen não poderia dizer melhor…
R. – Sem dúvida que o zen foi importante para a minha aprendizagem. Passei um longo período no Japão, a estudá-lo, embora sem um mestre físico. Na realidade, os meus principais mestres são hindus. Há uma verdade comum ao budismo e ao hinduísmo, essa tal necessidade de dissolução do eu no objecto do seu desejo.
P. – Os dois temas principais de “Approaching Silence” são muito longos, 32 e 38 minutos, respectivamente. A duração é um factor importante neste género de trabalhos?
R. – Em essência, sim. Mas neste caso particular há razões concretas: ambas as peças já tinham sido usadas numa instalação, “Redemption”, o que significa que eram ainda mais longas… Havia um lado visual e a música, que procurava facilitar às pessoas sentirem-se confortáveis naquele espaço, acalmarem-se, respirarem profundamente. Mas eu próprio, enquanto ouvinte, continuei a encontrar nesta música todas essas qualidades, mesmo sem o suporte visual. A arte em geral deverá ter esta função. A poesia tem sobre mim o mesmo efeito: ajuda-me a concentrar-me. Mas a música é mais poderosa. Peças deste tipo oferecem ao ouvinte uma enorme quantidade de tempo para ele se perder nelas e em si próprio. E a possibilidade de porem questões importantes, que, de outra forma, não seriam capazes de pôr.
P. – Chamaria à sua música “ambiental”?
R. – Não lhe chamo nada, mas é evidente que sofreu a influência da música ambiental, mas também de John Cage ou de Satie.
P. – De quem são as vozes sampladas que se ouvem na curta peça intercalar do disco, “Epiphany”?
R. – Do pintor Anselm Kiefer a recitar um texto de Krishnamurti, e do poeta Seamus Heaney.
P. – Quem ou o que é o “Godman”, título de uma das canções de “Dead Bees on a Cake”?
R. – Diz respeito ao potencial do ser humano e ao facto de, em geral, não sermos capazes de ver esse potencial. Se conseguíssemos ver quem somos de facto, agiríamos de forma muito diferente.
P. – Acredita no poder?
R. – Sim, há um poder que nos une a todos. Há um lado desse poder com aspectos negativos que tem a ver com o ego. O ego corrompe o verdadeiro poder. Rendemo-nos ao poder. De início sentimo-nos alheios, estranhos. Mas, se nos abrirmos à devoção, ao poder do amor, em última análise, sentimos a não separação entre nós próprios e o tal objecto da nossa veneração. Mas, para começar, é preciso limpar o ego e não estilhaçá-lo. Por isso, a fase inicial passa por uma rendição ao eu. É um processo complicado…
P. – Discos como “No Pussyfootin’” e “Evening Star”, de Robert Fripp com Brian Eno, reflectem esse poder de uma forma cuja audição pode ser penosa…
R. – Tinha 13 anos nessa altura e lembro-me de também ter respondido de forma muito negativa a esses dois álbuns.
P. – No final do tema “An index of metals” ouve-se o som, quase subliminar, de sinos. Som que, diz-se, prenuncia a loucura. “Approaching Silence” está cheio de sinos…
R. – Talvez eu esteja no trilho para a loucura. [Risos.]
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