Sons
17 de Setembro 1999
POP ROCK
Perder o Pé
Corria o ano de 1973. Em Inglaterra todos competiam para ver quem compunha e gravava faixas mais extensas, pondo a imaginação nos limites, entre o delírio genial e a fantochada inconsequente. Era o movimento da música progressiva, no seu auge. O choque chegou com a estreia em álbum de um grupo que usava a palavra “vaca” no nome e um título em relação com a capa que, na altura, ninguém percebeu: “The Henry Cow Legend”. A capa mostrava uma meia. Logo, deveria ler-se “leg end”, o fim da perna, ou seja o pé (daí a peúga…) e não “legend”, “lenda”. A música, essa, entrava em contradição com quase tudo. Em contravenção, a exigir mudanças, tão radicais quanto ela, do auditor e a da época em curso.
Os Henry Cow, com a formação de então – Fred Frith, Chris Cutler, Tim Hodgkinson, John Greaves e Geoff Leigh – representaram para o Progressivo em Inglaterra o mesmo que os Faust representaram para o krautrock na Alemanha: a pedrada no charco, o desdém absoluto pelos cânones dominantes, o pioneirismo e a experimentação juntas numa forma superior de arte. Demasiado inteligente para ser rock, demasiado divertido e pedante para ser jazz, “The Henry Cow Legend” não era, porém, jazz-rock, pelo menos no mesmo sentido que a música de formações inglesas contemporâneas dos Cow como os Nucleus ou do contingente dos aristocratas de Canterbury, liderados pelos Soft Machine e os Caravan. Sem fronteiras, orgulhosamente diferente e elitista, “The Henry Cow Legend” marcou toda uma corrente que a partir da cooperativa Rock In Opposition (formada, além dos Cow, pelos franceses Etron Fou Leloublan, os italianos Stormy Six e os suecos Samla Mammas Manna) se ramificou pela Europa (Art Zoyd, Univers Zero, Continuum, Présent, Debile Menthol) os Estados Unidos (Doctor Nerve, Muffins, Birdsongs of the Mesozoic, Motor Totemist Guild, 5 Uu’s) e Ásia (After Dinner, Tenko, Wha Ha Ha, Kenso). Varese, os Faust (com quem, aliás, os Henry Cow participaram numa digressão conjunta pelo Reino Unido) Frank Zappa e o dadaísmo estão mais próximos desta combinação absolutamente admirável e original de conglomerados concretistas, improvisações “free” e canções onde a anarquia e o humor davam as mãos (“Nine funerals of the citizen king”). O todo formando uma sequência de mudanças súbitas de registo, num instante passando da cacofonia para o quase silêncio, da apoplexia para o mistério, do intervencionismo ideológico para o esteticismo puro, da complexidade no limite do compreensível para a simplicidade mais desarmante. Agit-saxes, guitarras que não soam como guitarras, percussões “sinfónicas”, esoterismo, vocalizações entre o hieroglifo e a soletração infantil num prodígio de formas e ideias novas, cuja audição, passados 26 anos, continua a revelar-se estimulante e fonte de consulta inesgotável para as novas gerações. A presente reedição cumpre à risca o alinhamento e as misturas originais (na lombada houve o cuidado de referir “original mix”), ao contrário da anterior, na East Side Digital, que embora incluísse um tema extra (“Bellycan”, extraído da sessão de gravações para a colectânea da Virgin “Greasy Truckers”) era, em parte, desvirtuada pelo trabalho de remisturas levado a cabo por Tim Hodgkinson em 1990. O título é que foi alterado para “The Henry Cow Leg End”. Para evitar confusões… (Recommended, distri. Ananana, 10).
“Unrest”, segundo álbum dos Henry Cow, lançado no mesmo ano da estreia, estendeu de novo uma peúga na capa, agora em tonalidades cinza, estratégia que se manteria no álbum seguinte, “In Praise of Learning”, como forma de ironizar o facto de ninguém ter percebido o jogo de palavras em que o grupo tanto se empenhara. Mais inacessível que “The Henry Cow Legend” (ou “Leg End”…), “Unrest” recusa liminarmente o formato canção. É um álbum difícil para o auditor como foi difícil para os próprios músicos que então confessaram encontrar-se à beira de um impasse criativo. No início das gravações estavam prontos apenas metade dos temas (os primeiros quatro do alinhamento) vindo os restantes a ter por base improvisações realizadas “in loco” no estúdio. Geoff Leigh saíra entretanto, sendo substituído por Lindsay Cooper, oboé e fagote, perdendo-se, em consequência, a vertente mais jazzística do grupo, substituída por uma música rotulada de “rock de câmara” que se disseminaria daí em diante pela chamada escola Recommended, vindo a desenvolver-se (em conjunto com outra influência – os Magma) nos Art Zoyd e a cristalizar-se nos Univers Zero.
À semelhança de “The Henry Cow Legend”, também a nova reedição de “Unrest” difere da anterior, na East Side Digital. Desta feita por outras razões. É que a prensagem, como estava, tornava penosa a audição. Agora surge remasterizado e o som é soberbo. (Recommneded, import. FNAC, 8).
E passemos ao Progressivo, com P grande. É escandaloso que os Gentle Giant, que representam o próprio espírito do movimento, não tenham qualquer edição remasterizada no mercado. A Vertigo colmatou, em parte, esta falha, propondo um CD duplo que arruma a quase totalidade de temas dos primeiros quatro álbuns, “Gentle Giant”, “Acquiring the Taste”, “Three Friends” e “Octopus”, e do sexto, “The Power and the Glory”, todos editados originalmente na Philips/Vertigo. Falta o quinto, “In a Glass House”, que os Gentle Giant gravaram em 1973 para a WWA. Claro que os incondicionais do grupo não prescindirão das edições em separado, constituindo “Edge of Twilight” uma espécie de bombom, ideal para surpreender os amigos que nunca ouviram falar daquela que, até “Interview”, foi a banda mais sofisticada (os ingleses dizem “arty”) do Progressivo inglês. Kerry Minnear e os irmãos Shulman cultivaram uma fórmula sem precedentes nem continuadores, erguendo uma arquitectura sonora equivalente à das catedrais góticas, como estas necessitando de um mapa e das chaves certas para ser decifrada. Uma só faixa dos Gentle Giant vale por uma discografia inteira de milhares de grupos vulgares. (Vertigo, import. Lojas Valentim de Carvalho, 8). Não se vão já embora. Não há fome que não dê em fartura. Além desta colectânea também a BGO (Beat Goes On) lançou mais um dos seus pacotes de dois em um, com “Free Hand” e “Interview”, também remasterizados. Não são os álbuns mais brilhantes dos Gentle Giant mas justificam a chamada de atenção. Se o primeiro é o derradeiro momento em que o grupo conseguiu reinventar-se faixa a faixa, tornando-se, embora, mais acessíveis (um pouco à semelhança do que aconteceu com os Gryphon, em “Treason”), “Interview” é já um círculo fechado no qual os Gentle Giant se copiam (embora de forma superlativa) a si mesmos. Não é um mau disco mas percebe-se de antemão tudo o que vai acontecer. Como um mágico que tivesse perdido os seus segredos. (BGO, import. Megamúsica, média 7).
Outra versão dois em um da BGO juntou e remasterizou os dois únicos álbuns gravados pelos Forest, banda obscura da fase inicial do Progressivo, “Forest” (1969) e “Full Circle” (1970). Os Forest eram uma versão de segunda linha dos Incredible String Band, na sua vertente mais acústica, da mesma forma que os Dr. Strangely Strange pegaram no lado eléctrico da banda de Robin Williamson e Mike Heron. Como os ISB os Forest teciam pequenas filigranas de temas oníricos, em cuja composição algumas mentes mais desconfiadas descortinam a influência perniciosa do LSD. A diferença principal está em que enquanto os ISB primavam por uma tónica “hippie” e optimista, os Forest eram sinistros, antecipando a onda de folk gótico personificada por grupos como Mr. Fox, Fuchsia ou Spirogyra. Longe de serem peças de antologia, são, todavia, álbuns que adquiriram aquela aura mística que só os grupos Progressivos conseguem hoje ter. (BGO, import. Megamúsica, 7).
O lado, para muitos repulsivo, do Progressivo, mereceu também a atenção da BGO, através da reedição de um calhamaço editado em 1979 por Dave Greenslade, teclista dos Colosseum e fundador dos Greenslade, acompanhado pelos desenhos de Patrick Woodroffe: “The Pentateuch of the Cosmogony”. O vinilo vinha embalado num volume de folhas de fazer corar de vergonha as capas triplas de abrir dos Yes. Agora em CD, surge em caixa contendo a reprodução completa e em miniatura do livrete (chamar livrete a uma enciclopédia destas é favor) e dos desenhos “heroic fantasy” de Woodroffe, inspirados vagamente em “O Senhor dos Anéis” de Tolkien mas, apesar de tudo, bastante mais cuidados que qualquer ilustração de Roger Dean. A música, remasterizada, é uma exibição, mesmo assim de algum bom gosto, do virtuosismo do intérprete nas 356 variedades de teclados utilizados. Para Rick Wakeman e Keith Emerson aprenderem. (BGO, import. Megamúsica, 6)
17 de Setembro 1999
POP ROCK
Perder o Pé
Corria o ano de 1973. Em Inglaterra todos competiam para ver quem compunha e gravava faixas mais extensas, pondo a imaginação nos limites, entre o delírio genial e a fantochada inconsequente. Era o movimento da música progressiva, no seu auge. O choque chegou com a estreia em álbum de um grupo que usava a palavra “vaca” no nome e um título em relação com a capa que, na altura, ninguém percebeu: “The Henry Cow Legend”. A capa mostrava uma meia. Logo, deveria ler-se “leg end”, o fim da perna, ou seja o pé (daí a peúga…) e não “legend”, “lenda”. A música, essa, entrava em contradição com quase tudo. Em contravenção, a exigir mudanças, tão radicais quanto ela, do auditor e a da época em curso.
Os Henry Cow, com a formação de então – Fred Frith, Chris Cutler, Tim Hodgkinson, John Greaves e Geoff Leigh – representaram para o Progressivo em Inglaterra o mesmo que os Faust representaram para o krautrock na Alemanha: a pedrada no charco, o desdém absoluto pelos cânones dominantes, o pioneirismo e a experimentação juntas numa forma superior de arte. Demasiado inteligente para ser rock, demasiado divertido e pedante para ser jazz, “The Henry Cow Legend” não era, porém, jazz-rock, pelo menos no mesmo sentido que a música de formações inglesas contemporâneas dos Cow como os Nucleus ou do contingente dos aristocratas de Canterbury, liderados pelos Soft Machine e os Caravan. Sem fronteiras, orgulhosamente diferente e elitista, “The Henry Cow Legend” marcou toda uma corrente que a partir da cooperativa Rock In Opposition (formada, além dos Cow, pelos franceses Etron Fou Leloublan, os italianos Stormy Six e os suecos Samla Mammas Manna) se ramificou pela Europa (Art Zoyd, Univers Zero, Continuum, Présent, Debile Menthol) os Estados Unidos (Doctor Nerve, Muffins, Birdsongs of the Mesozoic, Motor Totemist Guild, 5 Uu’s) e Ásia (After Dinner, Tenko, Wha Ha Ha, Kenso). Varese, os Faust (com quem, aliás, os Henry Cow participaram numa digressão conjunta pelo Reino Unido) Frank Zappa e o dadaísmo estão mais próximos desta combinação absolutamente admirável e original de conglomerados concretistas, improvisações “free” e canções onde a anarquia e o humor davam as mãos (“Nine funerals of the citizen king”). O todo formando uma sequência de mudanças súbitas de registo, num instante passando da cacofonia para o quase silêncio, da apoplexia para o mistério, do intervencionismo ideológico para o esteticismo puro, da complexidade no limite do compreensível para a simplicidade mais desarmante. Agit-saxes, guitarras que não soam como guitarras, percussões “sinfónicas”, esoterismo, vocalizações entre o hieroglifo e a soletração infantil num prodígio de formas e ideias novas, cuja audição, passados 26 anos, continua a revelar-se estimulante e fonte de consulta inesgotável para as novas gerações. A presente reedição cumpre à risca o alinhamento e as misturas originais (na lombada houve o cuidado de referir “original mix”), ao contrário da anterior, na East Side Digital, que embora incluísse um tema extra (“Bellycan”, extraído da sessão de gravações para a colectânea da Virgin “Greasy Truckers”) era, em parte, desvirtuada pelo trabalho de remisturas levado a cabo por Tim Hodgkinson em 1990. O título é que foi alterado para “The Henry Cow Leg End”. Para evitar confusões… (Recommended, distri. Ananana, 10).
“Unrest”, segundo álbum dos Henry Cow, lançado no mesmo ano da estreia, estendeu de novo uma peúga na capa, agora em tonalidades cinza, estratégia que se manteria no álbum seguinte, “In Praise of Learning”, como forma de ironizar o facto de ninguém ter percebido o jogo de palavras em que o grupo tanto se empenhara. Mais inacessível que “The Henry Cow Legend” (ou “Leg End”…), “Unrest” recusa liminarmente o formato canção. É um álbum difícil para o auditor como foi difícil para os próprios músicos que então confessaram encontrar-se à beira de um impasse criativo. No início das gravações estavam prontos apenas metade dos temas (os primeiros quatro do alinhamento) vindo os restantes a ter por base improvisações realizadas “in loco” no estúdio. Geoff Leigh saíra entretanto, sendo substituído por Lindsay Cooper, oboé e fagote, perdendo-se, em consequência, a vertente mais jazzística do grupo, substituída por uma música rotulada de “rock de câmara” que se disseminaria daí em diante pela chamada escola Recommended, vindo a desenvolver-se (em conjunto com outra influência – os Magma) nos Art Zoyd e a cristalizar-se nos Univers Zero.
À semelhança de “The Henry Cow Legend”, também a nova reedição de “Unrest” difere da anterior, na East Side Digital. Desta feita por outras razões. É que a prensagem, como estava, tornava penosa a audição. Agora surge remasterizado e o som é soberbo. (Recommneded, import. FNAC, 8).
E passemos ao Progressivo, com P grande. É escandaloso que os Gentle Giant, que representam o próprio espírito do movimento, não tenham qualquer edição remasterizada no mercado. A Vertigo colmatou, em parte, esta falha, propondo um CD duplo que arruma a quase totalidade de temas dos primeiros quatro álbuns, “Gentle Giant”, “Acquiring the Taste”, “Three Friends” e “Octopus”, e do sexto, “The Power and the Glory”, todos editados originalmente na Philips/Vertigo. Falta o quinto, “In a Glass House”, que os Gentle Giant gravaram em 1973 para a WWA. Claro que os incondicionais do grupo não prescindirão das edições em separado, constituindo “Edge of Twilight” uma espécie de bombom, ideal para surpreender os amigos que nunca ouviram falar daquela que, até “Interview”, foi a banda mais sofisticada (os ingleses dizem “arty”) do Progressivo inglês. Kerry Minnear e os irmãos Shulman cultivaram uma fórmula sem precedentes nem continuadores, erguendo uma arquitectura sonora equivalente à das catedrais góticas, como estas necessitando de um mapa e das chaves certas para ser decifrada. Uma só faixa dos Gentle Giant vale por uma discografia inteira de milhares de grupos vulgares. (Vertigo, import. Lojas Valentim de Carvalho, 8). Não se vão já embora. Não há fome que não dê em fartura. Além desta colectânea também a BGO (Beat Goes On) lançou mais um dos seus pacotes de dois em um, com “Free Hand” e “Interview”, também remasterizados. Não são os álbuns mais brilhantes dos Gentle Giant mas justificam a chamada de atenção. Se o primeiro é o derradeiro momento em que o grupo conseguiu reinventar-se faixa a faixa, tornando-se, embora, mais acessíveis (um pouco à semelhança do que aconteceu com os Gryphon, em “Treason”), “Interview” é já um círculo fechado no qual os Gentle Giant se copiam (embora de forma superlativa) a si mesmos. Não é um mau disco mas percebe-se de antemão tudo o que vai acontecer. Como um mágico que tivesse perdido os seus segredos. (BGO, import. Megamúsica, média 7).
Outra versão dois em um da BGO juntou e remasterizou os dois únicos álbuns gravados pelos Forest, banda obscura da fase inicial do Progressivo, “Forest” (1969) e “Full Circle” (1970). Os Forest eram uma versão de segunda linha dos Incredible String Band, na sua vertente mais acústica, da mesma forma que os Dr. Strangely Strange pegaram no lado eléctrico da banda de Robin Williamson e Mike Heron. Como os ISB os Forest teciam pequenas filigranas de temas oníricos, em cuja composição algumas mentes mais desconfiadas descortinam a influência perniciosa do LSD. A diferença principal está em que enquanto os ISB primavam por uma tónica “hippie” e optimista, os Forest eram sinistros, antecipando a onda de folk gótico personificada por grupos como Mr. Fox, Fuchsia ou Spirogyra. Longe de serem peças de antologia, são, todavia, álbuns que adquiriram aquela aura mística que só os grupos Progressivos conseguem hoje ter. (BGO, import. Megamúsica, 7).
O lado, para muitos repulsivo, do Progressivo, mereceu também a atenção da BGO, através da reedição de um calhamaço editado em 1979 por Dave Greenslade, teclista dos Colosseum e fundador dos Greenslade, acompanhado pelos desenhos de Patrick Woodroffe: “The Pentateuch of the Cosmogony”. O vinilo vinha embalado num volume de folhas de fazer corar de vergonha as capas triplas de abrir dos Yes. Agora em CD, surge em caixa contendo a reprodução completa e em miniatura do livrete (chamar livrete a uma enciclopédia destas é favor) e dos desenhos “heroic fantasy” de Woodroffe, inspirados vagamente em “O Senhor dos Anéis” de Tolkien mas, apesar de tudo, bastante mais cuidados que qualquer ilustração de Roger Dean. A música, remasterizada, é uma exibição, mesmo assim de algum bom gosto, do virtuosismo do intérprete nas 356 variedades de teclados utilizados. Para Rick Wakeman e Keith Emerson aprenderem. (BGO, import. Megamúsica, 6)
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