23/04/2010

Meira Asher - Spears Into Hooks

Sons

22 de Janeiro 1999
POP ROCK

Meira Asher
Spears into Hooks (10)
Crammed, distri. Megamúsica


Apocalypse Now

Como o mundo acaba antes do ano 2000, Meira Asher antecipou-se, deixando para a geração de sobreviventes o seu próprio testemunho do apocalipse. “Spears into Hooks” é o segundo álbum desta israelita de cabelo rapado cuja estreia, intitulada “Dissected”, pese embora toda a sua força, não fazia prever o abalo emocional que a audição deste seu novo trabalho provoca. Os resquícios étnicos que aligeiravam um pouco a densidade musical de “Dissected” desapareceram, substituídos por um terramoto constante de electrónica industrial ultra-saturada, muito para além dos primeiros Test Dept. ou das litanias do inferno cuspidas por Diamanda Galas, que Meira ultrapassa na estética do grito, do vómito e do desespero.
“Spears into Hooks” explode-nos no estômago como uma granada. Obsessivamente, esfacelando o corpo e a alma, Meira Asher escalpeliza com uma minúcia que raia a crueldade a temática do Holocausto, tema após tema progressivamente mais perto do fundo do abismo. “Shahid 1” e “Shahid 2” são feridas, sons insuportáveis, samples de todas as guerras e todas as mortes e todas as torturas, música da agonia. Não se compreende como o estúdio aguentou, como as próprias máquinas suportaram a violência que lhes foi infligida. Imagine-se “Second Annual Report” dos Throbbing Gristle, mais “The Unacceptable Face of Freedom”, dos Test Dept., com uma dose extra de horror. “The Flood”, ainda no princípio, faz-nos já pensar na fuga, levando-nos a questionar como foi possível gravar um disco onde a dor está exposta de forma quase pornográfica.
Sob a voz, à beira do colapso, as máquinas agitam-se em fúria, elas mesmas esmagadas num sofrimento sem limites. E, como pano de fundo, um painel de morte: “samples” com gravações de mulheres e crianças atingidas por vários tipos de projécteis, descrevendo os seus efeitos físicos e as graduações da dor. Excertos adaptados do Génesis bíblico. Descrições de mortes, de assassínios, vozes vazias perante corpos que tombam, o testemunho de um sobrevivente do Holocausto. No final, a voz da israelita, cada vez mais distorcida, clama, escarra: “Die! Die” DIE!” Nada que se compare e nada que nos prepare para o que vem a seguir: “Weekend away break”. Um fim-de-semana turístico no campo de concentração de Birkenau. Uma batida de coração, amplificada até se confundir com a do planeta inteiro, em marcha para o inferno. “Uma canção de boas-vindas a um lugar criado por nós num momento de inspiração.” Golpes sobre golpes, dissecando a carne. E a canção saltando da hecatombe para uma valsa de Johann Strauss, “Spahrenklange”. Marlene Dietrich dançando com graciosidade, discos antigos, a elegância germânica, o mundo como um lugar cor-de-rosa.
“Birkenau e as suas florestas divinais, abrigo de espécies em extinção/De manhã vêem-se pessoas apanhando raízes e morangos/Outra atracção interessante: Elas não suportam o seu próprio cheiro a decadência/E à medida que o sol se põe por trás da floresta/Eles estarão a banhar-se e a fumar.” O martelo prossegue, a marcha torna-se fantasmática. A valsa do carrasco confunde-se com a ronda desconjuntada das vítimas. “Acordarás ao som das sirenes para outro dia passado no bar/e vais esquecer-te do pequeno-almoço porque vais experimentar os nossos pequenos jogos/E se não te apetecer jogá-los, bem, o que é que te podemos dizer mais?/Oferecemos-te a opção da sauna/Basta inalares e serás transportado para o paraíso.” O “ambiente celestial”, a “experiência etérea” culminando no silvo de gás e nos ecos de milhões de vidas que se vão extinguindo, como uma alucinação da mente, no “poema de Birkenau”. Não nos recordamos de um único disco que tenha ido tão longe.
Mas Meira Asher prossegue, implacável, atirando-nos à cara os coros de um povo que se extingue. Milícias de pedra, filmes sem imagem, queimados, esgotos e a fanfarra da Kocani Orkestar a incendiar o folclore dos Balcãs, em “Tiring night”, o único momento de “Spears into Hooks” em que se alivia um pouco a tensão. Mas logo a seguir os fornos reacendem-se com renovada intensidade. “Me last granny”, o amor e a destruição do amor, cantada em búlgaro e hebraico, metamorfoses vocais sobre electrochoques, chicotes eléctricos e ruídos de motor. Não faz mais sentido falar de música industrial. “I love you so – so – much.” Novo golpe. Doença do cérebro. Heresia e uma bênção. Uma criança com voz de demónio. Programações de Satanás.
O mal tudo cobre, por fim, em “É um Uomo”, resposta ao poema “Se questo é un uomo”, de Primo Levi. Insensíveis, com a inexorabilidade da morte, as máquinas (nunca os computadores se reduziram tanto a instrumentos de tortura, como em “Spears into Hooks”, conglomerando-se em rajadas de metralhadora, explosões e entropia de gases, vidro estilhaçado e metal) despedaçam os membros, braços e pernas, de uma mulher que grita até conseguir esquecer: “Lembramo-nos de tudo o que aconteceu/E agora é encarado como nunca tivesse acontecido/Não gravaremos nada nos nossos corações/Quando chegarmos a casa e já estivermos longe/Quando pudermos descansar e nos erguermos de novo/Não imprimimos nada do que vivemos nos nossos filhos/Deste modo perderemos a nossa essência/E a doença tomará conta de nós da cabeça aos pés/E a nossa descendência afastar-se-á de nós/Cada vez mais, para todo o sempre.” 1999 já encontrou o seu disco do ano. Chama-se “Spears into Hooks” e tem na contracapa um pardal crucificado.

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