17 de Julho 2001
No Festival Sete Sóis Sete
Luas
Camané, o embaixador
perfeito da saudade em Itália
Na cidade toscana de Pontedera
(Itália), o fadista português cantou fado com "F" maiúsculo e comoveu
uma plateia constituída em partes iguais por portugueses e italianos
Camané confirmou em Itália por que
é considerado um dos maiores, senão o maior, fadista da actualidade. Na cidade
toscana de Pontedera, em espectáculo integrado na programação do festival Sete
Sóis Sete Luas, o cantor português conseguiu comover uma plateia constituída em
partes iguais por portugueses e italianos, depois de uma primeira parte
preenchida pelo folclore da Orquestra de Ponte de Sôr.
Faz calor, bastante calor, por
estes dias, na Toscânia. Na Villa Malaspina, em Montecastello, no jardim do
palacete pertencente a uma aristocrata, marquesa, no mesmo local onde, em
edições anteriores do festival, já actuaram Teresa Salgueiro com António
Chainho, Amélia Muge, Mafalda Arnauth e Cristina Branco, mal corria uma brisa,
com uma temperatura de grilos, giestas e estrelas. O cenário, digno de um filme
dos irmãos Taviani, convidava a intimismos. Camané encheu-o de fado. Fado com
"F" maiúsculo, aquele que surge quando a música e a voz se excedem,
passando para o lado do mistério.
Acompanhado à guitarra portuguesa
por José Manuel Neto, à viola por Carlos Manuel Proença e, ao contrabaixo, por
Paulo Paz, Camané deu a ouvir ao público italiano a poesia de Júlio Dinis,
Manuela de Freitas, Fernando Pessoa, Antero de Quental, David Mourão-Ferreira e
João Monge, entre outros. A música do fado, essa, levando embora a assinatura
de autores como Frederico de Brito, José Mário Branco, Alfredo Marceneiro ou
João Gil, alternando com uma quantidade de modalidades tradicionais, ganhou na
voz de Camané tonalidades e uma força expressiva únicas. Camané entra dentro de
si, procura dentro de si, canta dentro de si. Explorando os ventos (palavra,
aliás, recorrente em muitos dos poemas...) e os espaços, os silêncios e as
preces, entre o arrebatamento e a suspensão do voo das aves. Se, nos fados
tradicionais, a sua voz se move como peixe na água, foi através da escrita de
José Mário Branco - produtor de todos os seus álbuns até a data, incluindo o
próximo, já gravado e pronto a ser editado em Novembro - que Camané demonstrou
ser possível ao fado soar simultaneamente eterno e novo, clássico e inovador,
português e universal. Em dois desses fados, "Eu não me entendo" e
"Sopram ventos adversos", algo de transcendente pairou sobre a
música. Algo de muito antigo e, paradoxalmente, moderno, com o canto do fadista
a navegar entre uma guitarra e uma viola de sabor árabe-medieval e um contrabaixo
solto nas liberdades do jazz. Admiração, espanto, devoção. Camané foi o
embaixador perfeito da saudade. E da contemporaneidade (não haverá muitos
fadistas que, como ele, se entusiasmaram com o concerto recente dos Von Magnet,
em Portugal...).
"Guitarra, guitarra", de
Jorge Fernando, foi outro dos momentos altos da sua actuação, enquanto em
"Escada sem corrimão" os versos de David-Mourão Ferreira ganharam na
voz do fadista ressonâncias inigualáveis, provavelmente porque ele próprio as
terá feito suas: "É uma escada em caracol/E que não tem corrimão/Vai a
caminho do sol/Mas nunca passa do chão (...) Adivinhaste, é a vida, a escada
sem corrimão". Camané subiu-a a pulso.
Depois do concerto choveu e
trovejou. É costume, no Verão da Toscânia. As comitivas de Camané e de Lula
Pena (que hoje actua no mesmo local) rejubilavam, rindo e gritando vivas a
Itália, num deslumbramento de relâmpagos, cânticos improvisados e vinho tinto
"Chianti".
Sem comentários:
Enviar um comentário