17/05/2015

Camané, o embaixador perfeito da saudade em Itália [Festival Sete Sóis Sete Luas]



17 de Julho 2001

No Festival Sete Sóis Sete Luas

Camané, o embaixador perfeito da saudade em Itália

Na cidade toscana de Pontedera (Itália), o fadista português cantou fado com "F" maiúsculo e comoveu uma plateia constituída em partes iguais por portugueses e italianos

Camané confirmou em Itália por que é considerado um dos maiores, senão o maior, fadista da actualidade. Na cidade toscana de Pontedera, em espectáculo integrado na programação do festival Sete Sóis Sete Luas, o cantor português conseguiu comover uma plateia constituída em partes iguais por portugueses e italianos, depois de uma primeira parte preenchida pelo folclore da Orquestra de Ponte de Sôr.

Faz calor, bastante calor, por estes dias, na Toscânia. Na Villa Malaspina, em Montecastello, no jardim do palacete pertencente a uma aristocrata, marquesa, no mesmo local onde, em edições anteriores do festival, já actuaram Teresa Salgueiro com António Chainho, Amélia Muge, Mafalda Arnauth e Cristina Branco, mal corria uma brisa, com uma temperatura de grilos, giestas e estrelas. O cenário, digno de um filme dos irmãos Taviani, convidava a intimismos. Camané encheu-o de fado. Fado com "F" maiúsculo, aquele que surge quando a música e a voz se excedem, passando para o lado do mistério.

Acompanhado à guitarra portuguesa por José Manuel Neto, à viola por Carlos Manuel Proença e, ao contrabaixo, por Paulo Paz, Camané deu a ouvir ao público italiano a poesia de Júlio Dinis, Manuela de Freitas, Fernando Pessoa, Antero de Quental, David Mourão-Ferreira e João Monge, entre outros. A música do fado, essa, levando embora a assinatura de autores como Frederico de Brito, José Mário Branco, Alfredo Marceneiro ou João Gil, alternando com uma quantidade de modalidades tradicionais, ganhou na voz de Camané tonalidades e uma força expressiva únicas. Camané entra dentro de si, procura dentro de si, canta dentro de si. Explorando os ventos (palavra, aliás, recorrente em muitos dos poemas...) e os espaços, os silêncios e as preces, entre o arrebatamento e a suspensão do voo das aves. Se, nos fados tradicionais, a sua voz se move como peixe na água, foi através da escrita de José Mário Branco - produtor de todos os seus álbuns até a data, incluindo o próximo, já gravado e pronto a ser editado em Novembro - que Camané demonstrou ser possível ao fado soar simultaneamente eterno e novo, clássico e inovador, português e universal. Em dois desses fados, "Eu não me entendo" e "Sopram ventos adversos", algo de transcendente pairou sobre a música. Algo de muito antigo e, paradoxalmente, moderno, com o canto do fadista a navegar entre uma guitarra e uma viola de sabor árabe-medieval e um contrabaixo solto nas liberdades do jazz. Admiração, espanto, devoção. Camané foi o embaixador perfeito da saudade. E da contemporaneidade (não haverá muitos fadistas que, como ele, se entusiasmaram com o concerto recente dos Von Magnet, em Portugal...).

"Guitarra, guitarra", de Jorge Fernando, foi outro dos momentos altos da sua actuação, enquanto em "Escada sem corrimão" os versos de David-Mourão Ferreira ganharam na voz do fadista ressonâncias inigualáveis, provavelmente porque ele próprio as terá feito suas: "É uma escada em caracol/E que não tem corrimão/Vai a caminho do sol/Mas nunca passa do chão (...) Adivinhaste, é a vida, a escada sem corrimão". Camané subiu-a a pulso.

Depois do concerto choveu e trovejou. É costume, no Verão da Toscânia. As comitivas de Camané e de Lula Pena (que hoje actua no mesmo local) rejubilavam, rindo e gritando vivas a Itália, num deslumbramento de relâmpagos, cânticos improvisados e vinho tinto "Chianti".

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