Y
21|DEZEMBRO|2001
capa|cinema
um anel para todos dominar
“Os
hobbits, aquele povo baixinho, feiinho, barrigudo e peludo, que gosta de comer
e de ficar calmamente à mesa, em grandes almoçaradas e jantares, mas que,
quando as circunstâncias o exigem, em momentos de crise, se transfigura por
completo, faz-me lembrar os portugueses…”.
Um adepto da Irmandade
O Senhor dos Anéis não é
obra que se leia de ânimo leve.
Como um passe de magia, ela
transforma a vida de quem lê. Terminada a leitura, fica a saudade, um novo olhar sobre o mundo e o desejo de
converter os renitentes. Agora com o filme de Peter Jackson, a Irmandade
ganha novos adeptos.
A Humanidade divide-se em dois grupos: o
dos que leram “O Senhor dos Anéis”, com os “Monthy Python” e Giselle Bündchen
uma das manifestações mais sublimes do génio humano; e o grupo dos que não
(estão à espera de quê?).
Os que leram, podem comprovar que não
estamos a mentir ao afirmar que a leitura da trilogia escrita por John Ronald
Reuel Tolkien, entre 1936 e 1949, e cujo primeiro volume, “A Irmandade dos
Anéis”, deu à estampa pela primeira vez em 1954, fez deles pessoas melhores. E
os fez descobrir que o mundo pode ser um mundo melhor. E que o mundo da
fantasia é tão ou mais real que o mundo físico.
Os que não leram – por teimosia, ou para
contrariar a atitude missionária dos que, tendo lido, anseiam partilhar a
epifania com os leigos – justificam o lapso tremendo, cofiando o bigode com ar
sério ou ajustando a bainha da saia da maioridade, acusando a obra de Tolkien
de se destinar às crianças.
Também se encontra a fação dos que, não
conseguindo ultrapassar a barreira do volume I, introdução didática aos
“hobbits” e aos seus usos e costumes que é uma espécie de ritual para
distinguir os eleitos dos preguiçosos, desiste ao primeiro embate com a
complexa iconografia e onomástica que Tolkien propõe no preâmbulo.
A estes grupos de resistentes, ou detratores,
respondem os tolkienómanos fundamentalistas com um encolher de ombros e um
olhar de desprezo. A ala mais conservadora, porém, tenta convencê-los,
dispondo-se mesmo a ler-lhes em voz alta, se isso for necessário para fazê-los
ver a luz.
“O Senhor dos Anéis”, ao contrário da
história anterior de Tolkien, “O Hobbit”, não é uma obra para crianças. Ainda
que a sua magia apenas possa ser apreendida por aqueles adultos que conservaram
dentro de si a pureza (e a Fé) da criança. Encare-se, antes, esta imensa
geografia de seres, lugares, linguagens e situações, nos antípodas desse outro
tipo, mais negro, delineado duas décadas antes por H.P. Lovecraft, como a imersão
na quintessência do Humano, aí onde apenas a imaginação, o humor e a intuição
servem de bússola. É a demanda, a aventura perpétua (é facto assente: todos os
que a leram sentiram no final uma nostalgia, a sensação de perda, fruto do
desejo de que a aventura perdurasse para sempre…) cujo sentido vai da pequenez
para uma dimensão cósmica. Com regresso a casa.
eterno retorno. Frodo, Merry e Pippin, mesmo Sam Gamgee,
os quatro “hobbits” da “Irmandade do Anel”, cuja missão é a destruição do Um
Anel no Monte da Condenação (e a vitória sobre o Mal, personificado por
Sauron), vão crescendo, física e espiritualmente, aproximando-se gradualmente
de uma natureza élfica, a mais nobre de “O Senhor dos Anéis” (aqui Tolkien
retoma o ideário do Amor e da Gnose medievais…), à medida que a saga vai
avançando. Ciclo de Cavalaria ou Demanda inversa do Graal, o Eterno Retorno de
“O Senhor dos Anéis” é apenas aparente. Frodo e os restantes hobbits regressam
a casa diferentes do que eram ao partirem. A adaptação à mesquinhez e à
normalidade do dia-a-dia no Shire tornara-se impossível. Aos portadores do Anel
nada mais restava senão embarcar na derradeira viagem que os levará, na
companhia dos derradeiros elfos, a um mundo ainda mais distante, do outro lado
do mar. O “Avalon” dos celtas. A “Ilha dos Amores” camoniana. O céu, enfim.
Existe nesta obra que muitos consideram
“A Obra” literária do séc. XX, um itinerário (outra das delícias da leitura:
seguir passo a passo, no mapa impresso nas primeiras páginas dos três volumes,
as diversas etapas da viagem), exterior e interior. “Um mapa da fantasia que, por
detrás, esconde o mapa verdadeiro da Inglaterra”, diz Tom Shippley, professor
de filologia inglesa antiga, na Universidade de Leeds. Lê-la, com “L”
maiúsculo, é seguir lado a lado com a Irmandade, resistir à fúria dos elementos
nas altas encostas de Caradhras, lutar contra aranhas gigantescas na floresta
Tenebrosa, enfrentar o terror inominável nos subterrâneos de Moria, naquele que
será o episódio mais próximo das trevas Lovecraftianas, como este as efabuloou
em “Nas Montanhas da Loucura”.
“O Senhor dos Anéis” obriga-nos a entrar
e a viver no interior deste mundo. A partilhar os medos e as alegrias, os
anseios e as dúvidas, os momentos de desânimo e os deslumbramentos, as pequenas
cobardias e os atos de bravura de cada um dos elementos da Irmandade do Anel.
Combatemos ao lado de Frodo e dos seus companheiros, os ferozes orcs e os
horrendos trolls; ajudamos a derrubar, com o auxílio dos inenarráveis Ents, a
torre de Saruman, o feiticeiro traidor, símbolo da racionalidade demoníaca.
Reaprendemos a olhar o mundo que nos
rodeia com um olhar mais límpido e luminoso, a descobrir o véu ténue que separa
o sonho da realidade e a vislumbrar o que se move do lado de lá e influencia o
lado de cá.
Para Judi Dench, narradora do programa
televisivo britânico “J. R.T.T. - A Portrait of John Ronald Reuel Tolkien”,
realizado em 1992, no centenário do nascimento do escritor, “o livro ergue-se
sobre velhos padrões de um desejo universal, de se querer um mundo mais rico,
profundo e vivo do que o que Descartes nos deu. De desejar encontrar algo que
não é magia, mas encantamento, no mundo que nos rodeia e que o mundo de Tolkien
nos dá, numa base permanente, de modo que, ao fecharmos o livro, podemos olhar
à nossa volta, e os nossos olhos mantêm essa imagem. Continuamos a ver esse
mundo no mundo em que vivemos”.
Na introdução a “O Senhor dos Anéis”,
Tolkien refere o facto de durante a escrita de “O Hobbit”, a obra que daria
origem a “O Senhor dos Anéis”, ter tido “vislumbres de coisas mais elevadas,
tanto para o bem como para o mal”. Quanto a isso, não tenhamos dúvidas. Sauron
continua ativo, os seus feitiços a tornar espessas todas as coisas. O “Um anel
para todos dominar, um anel para os encontrar/um anel para todos prender, e nas
trevas os reter/na terra de Mordor, o reino das sombras” continua a exercer o
seu poder e fascínio sobre os homens. “O Senhor dos Anéis” extravasa das folhas
de papel para o coração do leitor, e de lá escorre para a confusão das cidades,
redimindo os vícios de uma Humanidade apartada de si mesma, esquecida dos
tempos em que foi grande, incapaz de se reconhecer nos feitos dos heróis.
a outra irmandade. A par da Irmandade dos Anéis, existe,
espalhada pelos quatro cantos do mundo, uma outra Irmandade, a dos admiradores de
Tolkien. Portugal não é exceção. O Y falou com dois membros dessa Irmandade,
António Martins, 37 anos, professor do Ensino Básico, em Loulé, que ainda não
viu o filme, e Pedro Laginha, 15 anos, estudante, que já viu, e “adorou”, a
adaptação cinematográfica de Peter Jackson. António Martins já leu “O Senhor
dos Anéis” duas vezes. Da primeira ficou o deslumbramento da descoberta de uma
“paisagem fantástica” e, como acontece aos verdadeiros “crentes”, uma “imensa
tristeza por acabar a leitura do livro e a vontade de continuar”.
A paixão pela Idade Média e o amor pela Natureza,
sentidos desde sempre por António Martins, ajudam a explicar a sua predileção,
entre todas as personagens da trilogia, pelos Ents, cuja ação é determinante na
vitória final das forças do Bem contra os exércitos de Saruman.
“O ataque final ao Senhor das Trevas, por
aqueles seres, meio animais, meio árvores… São eles que acabam por rebentar com
a fortaleza e estoirar com as pedras. Na Natureza também é assim que as coisas
acontecem, as armas humanas acabam por ser destruídas pelas forças naturais”.
Os hobbits são outros dos povos da Terra
Média pelos quais este professor do Primário não esconde a sua admiração,
descobrindo inclusive na sua compleição física e no seu perfil psicológico
insuspeitas conotações… “Aquele povo baixinho, feiinho, barrigudo e peludo, que
gosta de comer e de ficar calmamente à mesa, em grandes almoçaradas e jantares,
mas que, quando as circunstâncias o exigem, em momentos de crise, se
transfigura por completo, faz-me lembrar os portugueses…”.
Destaca ainda a dicotomia Tom
Bombadil/Gandalf, outra das suas personagens favoritas: “Tom Bombadil tem poderes
fantásticos, nada o afeta, é a eterna testemunha, o mais antigo de todos, tão
velho, tão velho, mas apesar de tudo criança, que apesar de todos esses poderes
não age, prefere brincar, achando que tudo são trivialidades. Gandalf, pelo
contrário, usa a sua sabedoria e os seus poderes. Ainda não perdeu essa
capacidade de achar que pode modificar o rumo dos acontecimentos”.
O regresso, muitos anos mais tarde, a “O
Senhor dos Anéis”, para uma segunda leitura, “de enfiada, sem conseguir parar,
no Metro, na casa de banho, à noite, antes de adormecer”, coincidiu com uma perspetiva
já mais serena da obra. Além disso, depois do “choque” causado pela primeira,
que terá durado cerca de “dois, três meses”, António tornou-se, como mandam as
regras, um “fanático” do universo tolkeniano. “Fiquei escandalizadíssimo quando
três ou quatro pessoas me disseram que começaram a ler aquilo e acharam chato
(risos). Disse-lhes para insistirem…”. Já conseguiu converter a mulher, que
após as resistências habituais, já vai no final do volume I, e “está a adorar”.
Para este professor que gosta de passear pela serra algarvia, para contemplar
de perto a Natureza, o “mundo imaginário” de “O Senhor dos Anéis” é “uma imagem
de todos nós”: “Tolkien conseguiu agarrar nas pulsões mais íntimas da
Humanidade”.
Foi através da mãe, que o aconselhou a
ler o livro, que Pedro Laginha entrou neste mundo imaginário. Não se fez rogado
e logo reparou que o “envolvia”. Leu “A Irmandade do Anel” em um ou dois meses.
Seguiu rapidamente para o resto da trilogia. Teve pena de parar. O seu
preferido é o volume II, “As Duas Torres”. Destaca a “variedade de raças e de místicas”
e a “criatividade” das “descrições, dos calendários, dos cenários”. As suas
personagens favoritas são Gandalf, Aragorn e Sam Gamgee. Identifica-se com
Frodo. “Senti o mesmo que ele estava a sentir, a sua ansiedade”. Pedro é um dos
felizardos que já viu o filme. Gostou. “Talvez falte uma coisa ou outra, como a
cena do Tom Bombadil…”. A falha não será suficiente para desencorajar Pedro de
ler os três livros outra vez.
“Então quando vi o filme, fiquei tão
entusiasmado que ando a tentar convencer os meus amigos a lerem também”. São
assim, os membros da Irmandade dos Admiradores de “O Senhor dos Anéis”
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