9 de Julho 2001
Velocidade impede o povo de acompanhar cortejo
Trasladação de Amália para o
Panteão Nacional
O último adeus de Amália
Ao contrário do que aconteceu no
funeral da fadista, foi impossível segui-la na última das despedidas. O carro funerário
foi mais veloz. No Panteão, o Presidente da República fez o elogio de Amália,
protagonista de "uma das carreiras mais gloriosas do século XX"
"Não sei se fui amada",
costumava dizer Amália. A homenagem nacional que ontem lhe foi feita, acompanhada
da trasladação dos seus restos mortais, do Cemitério dos Prazeres, em Lisboa,
onde repousavam desde a data da sua morte, a 6 de Outubro de 1999, para o
Panteão Nacional, onde a partir de ontem passa a ser a única mulher aí
presente, ao lado de vultos da cultura portuguesa como Almeida Garrett, João de
Deus e Guerra Junqueiro, mostraram que não foi esquecida, como tanto receava.
Não tanto pela pompa e circunstâncias da cerimónia em si, como pela
demonstração de fidelidade e saudade com que o povo continua a acarinhar a sua
memória. Amália foi e continua a ser amada pelos portugueses.
Os rituais de homenagem
propriamente ditos, consumada a operação prévia de transportar o corpo da
fadista da campa onde se encontrava, para a capela do cemitério, começaram à
hora de almoço. Não eram ainda muitas as pessoas que nesse local podiam
circular em volta da urna. Uma hora mais tarde já eram algumas centenas,
envolvidas na azáfama dos "media". A maioria pessoas de idade, as que
ouviram mais de perto a música de Amália. Os novos estão no Meco. O fado de
Amália pertence a outra geração. Representou ou não Amália o Portugal dos três
"F", fado, futebol e Fátima? Hoje, o fado rejuvenesceu e o futebol
transformou-se num negócio. Fátima continua a vender bem.
Uma apresentadora de serviço retoca
a maquilhagem. Coloca bâton nos lábios e pó nas faces esquecendo-se, apesar do
local, da máxima "do pó vieste, ao pó retornarás". O vento arranca o
boné da cabeça de um dos muitos polícias fardados a rigor que compõem a guarda
de honra, quebrando-lhe por instantes a solenidade da pose.
No cemitério vai entrando cada vez
mais gente. Amália atrai gente. A televisão em directo atrai gente. Uma senhora
põe a tocar no gravador que leva na mão, fados da homenageada. Não deixam os
outros mortos descansar em paz. Também há turistas, embora não se descortine
nas imediações qualquer banca de venda de CD. De quando em quando os
altifalantes difundem os testes de som. Um som de baixo, uma flauta, um piano,
trémulos com a responsabilidade do momento solene que está para vir.
Às 17h08, poucos minutos depois da
hora prevista, a urna, coberta por uma bandeira nacional, é finalmente
depositada no exterior, exposta aos raios implacáveis do sol, à força da
saudade, à indiscrição das câmaras, à curiosidade impiedosa.
A excitação aumenta. Uma família
exibe grandes fotografias emolduradas da fadista. Logo aparece alguém que, por
sua vez, os fotografa. Emoção e exibicionismo confundem-se. Um homem traz
vestida uma t-shirt com a imagem de Amália estampada. Um grupo de senhoras
recorda o nome de outros fadistas, todos eles antigos, incluindo o de Berta
Cardoso, de quem Amália era admiradora. O mote principal é: "Eu gostava de
Amália. Eu falei com Amália. Eu comprei batatas na mesma mercearia que Amália.
Estou aqui. Filmem-me!".
O grupo instrumental e coro juvenis
ensaiam uma vez mais as suas canções. Experimenta-se pela enésima vez, o som. O
som está bom. A música exprime religiosidade e saudade - "Queremos estar
junto de ti!" - ao melhor estilo de baladas pop FM (com mais órgão
electrónico). No interior da capela outro coro, improvisado, canta, emocionado,
mais uma despedida, ao mesmo tempo que, lá fora, o coro oficial continua a
cantar o reportório que faz parte do programa. Misturam-se as canções e os
sentimentos. O ruído de um avião abafa ambos. Na capela irrompem aplausos
frenéticos, tendo como fundo a imagem de Cristo crucificado. "Amália tem
mais encanto na hora da despedida", adaptado à diva do fado de Lisboa, é o
hino que ficou". O frenesim das televisões aumenta. A atenção das pessoas,
ávidas de aparecer, também. "Só a TVI tem uma quantidade de câmaras",
comenta alguém com ar de entendido.
Não há procissão
Ainda antes das cinco e meia da
tarde aparece uma comitiva de políticos para cumprimentar os familiares de
Amália. Almeida Santos, João Soares, Maria de Belém, Mota Amaral. Pouco depois
tem início a missa campal. Tudo decorre nos conformes. A homilia chama a
atenção para o facto de que "todos nos encontraremos com Amália na
Jerusalém Celeste, para ouvirmos outros fados, diferentes das melopeias da
Terra".
O padre destaca ainda algumas das
qualidades da música de Amália. Segundo ele, Amália "cantou o tempo, a
história dos homens" e "a beleza da criação - o mar, os pinheiros, as
fontes, a luz da lua, o lençol de linho...". Acentua ainda - e aqui acerta
em cheio - o "fado ardente". O fado de Amália era isso. À bênção, que
inclui todos os que jazem no cemitério e a comunicação social, sucede uma
oferenda de flores a Nossa Senhora do Carmo, ao som do fado com o mesmo nome. A
missa dura uma hora. "Deus a tenha em descanso", remata alguém.
Pouco depois o carro que transporta
a urna sai do cemitério. Lá fora, outra pequena multidão, aplaude. Os que
seguem atrás da viatura acenam com lenços: "Ela merecia"",
"Viva o povo!", "Isto até parece uma procissão". Mas,
surpreendentemente, não há procissão. O cortejo fúnebre de 6 quilómetros,
através da cidade, de que toda a gente estava a espera, à semelhança do que
acontecera no dia do funeral da fadista, nem sequer chega a começar. O carro
dispara em velocidade de rally, a abrir. As pessoas, espantadas, desatam a
correr atrás dele, tentando acompanhar o bólide. Em vão. A situação passa
rapidamente do ridículo para a indignação geral. "Que estupidez!",
"Daqui ao Panteão são duas horas!", "Então faz-se uma coisa
destas?", "O povo vem cá para acompanhar o funeral e depois
desaparecem?", "Quando lá chegarmos já ela passou à frente da porta
de casa", "Estiveram ali um dia inteiro a engonhar para isto"
são algumas das frases disparadas por quem se dispunha a acompanhar durante
mais algum tempo o seu ídolo e via as expectativas goradas, sem aviso. Mesmo
assim há quem reaja com bonomia: "O povo devia ser transportado em
autocarros!".
Desaparecido o carro funerário na
primeira esquina da Rua Saraiva de Carvalho e tendo nós conseguido percorrer
apenas uma centena de metros a pé, a opção foi seguir directamente de táxi para
o Panteão.
Símbolo colectivo
No largo do Panteão, a multidão é
maior do que nos Prazeres e o ambiente tem a solenidade que lhe é conferida
pela presença do Presidente da República e do Primeiro-Ministro. Paulo Bragança
entra discretamente no monumento. A urna supersónica trava enfim. Um grupo de
jovens, afogueados e de língua de fora, que conseguira segui-la, "a
correr", desde Alcântara, exibe, ofegante um cartaz rabiscado à pressa:
"Amália do coração do povo". Já mais devagar, os seis elementos que
transportam a urna recebem a instrução para "seguirem sempre no mesmo
passo". Quando a depositam, de novo, agora em frente à entrada do panteão,
onde ficará a repousar para sempre, o entusiasmo e fervor populares explodem. O
coro dos Antigos Orfeonistas da Universidade de Coimbra entoa o hino nacional.
Há uma senhora que chora e logo uma câmara de televisão salta por sua vez para
a sua frente, na ânsia de registar a dor em directo.
Pouco depois das 20h Jorge Sampaio
faz finalmente o elogio da artista, destacando nela "símbolo
colectivo": "Fez da sua voz uma Pátria, um Bilhete de Identidade,
dela e nosso, um passaporte que nos levou a todo o lado". E a
"fidelidade ao coração" e a "ressonância universal" do seu
fado: "Houve gente que aprendeu a falar português só para perceber as
letras". Já com a voz embargada pela emoção, engana-se no nome daquela
que, diz, teve "uma das carreiras mais gloriosas do século XX":
Amala, em vez de Amália. Tinha razão. Amália foi amada. Ainda é.
Sem comentários:
Enviar um comentário