Y
8|MARÇO|2002
folk|música
chieftains on the road
Estão a comemorar 40 anos de carreira, feita de discos e
concertos lendários. É grande a música. São muitos anos. É muita estrada. “The
Wide World Over” é a antologia acabada de editar.
“The Wide World Over”, 39º álbum dos The Chieftains, é uma
panorâmica, incompleta mas fascinante, do longo percurso do grupo pela folk,
pela country e pela pop (e também pelo “reggae”…), onde estão presentes
convidados do calibre de Sinéad O’Connor, Ry Cooder, Joni Mitchell, Van
Morrison, Art Garfunkel, Diana Krall, Sting, Linda Ronstadt, Elvis Costello e
os Rolling Stones. Três novos temas foram incluídos na retrospetiva:
“Redemption song”, um original de Bob Marley, com a presença do filho, Ziggy,
que é também a primeira incursão dos Chieftains no “reggae”, “Morning has
broken”, um velho “hit” de Cat Stevens, com as vozes de Diana Krall e Art
Garfunkel, gravado no dia de Ano Novo durante o cruzeiro pela Antártida, e o
tradicional “Chasing the fox”, interpretado pela Cincinnati Pops Orchestra.
Lendas
vivas da música tradicional irlandesa, os Chieftains tornaram mais céltica a
“world music”, colorindo de verde esmeralda uma vasta parcela do planeta, a
partir do momento em que, nos anos 50, Paddy Moloney, Sean Potts e Martin Fay
abandonaram a orquestra Ceolteoiri Chaulann, com direção do “papa” Sean
O’Riada, para fundar o grupo e alargar os seus horizontes musicais.
Jigs e
reels de origem tornaram-se, desde 1964, ano do álbum de estreia dos Chieftains,
o pão nosso de cada dia desta banda cujas “uillean pipes”, violino, flauta, tin
whistle, concertina, harpa e bodhran soam tao naturais num pub alvoraçado como
num auditório de concerto. Os Chieftains necessitavam de viajar, para
partilhar, e foi a isso que se dedicaram ao longo das últimas duas décadas.
Foram à
China, dando a perceber o misterioso parentesco entre as músicas irlandesa e
chinesa. Passaram pela Galiza, onde fizeram “Celebration”, com os Milladoiro.
Estiveram na Bretanha para ajudar a selar um “Celtic Wedding” que é um dos
clássicos da folk europeia. Nos EUA deram a conhecer “Another Country” e
puseram os gigantes da mitologia céltica, os Tanatha De Dannan, a tocar banjo.
Vieram a Lisboa e ao Porto, onde, numa das edições do Intercéltico, rubricaram
um concerto que ficou para a história. No cinema, contribuíram para que “Barry
Lyndon”, de Kubrick, acrescentasse mais uma folha ao trevo que serve de ícone
da Irlanda. Tocaram com Rickie Lee Jones, Nanci Griffith, Marianne Faithfull,
Jackson Browne, Tom Jones, Mark Knopfler e Júlio Pereira. Sem eles, o gaiteiro
galego e atual superstar da “world music”, Carlos Nuñez, que apadrinharam
durante anos, não teria a projeção que tem hoje.
Tocaram com
orquestras, homenagearam Dublin (“The Bells of Dublin”) e as mulheres (“Tears
of Stone”), aproximaram as várias músicas e culturas do globo umas das outras.
Pelo caminho, arrecadaram Grammys, em 1992 (com “An Irish Evening at the Grand
Opera House, Belfast”), 1993 (com “Another Country”), 1996 (com “Santiago”) e
1998 (com “Long Journey Home”).
eucaristia. Assistir a um concerto dos
Chieftains é participar numa eucaristia composta por música com raízes
mergulhadas na eternidade do céu e alimentada pelos sucos da terra. Cada
performance deste coletivo formado por respeitáveis veteranos de cabelos
brancos é ainda uma lição de humor e jovialidade em que a comunicação com o
público desempenha papel fulcral. E a fidelidade a um compromisso: o grande
concerto de comemoração que tinham agendado para este ano, em Dublin, foi
cancelado em respeito às vítimas do 11 de Setembro; no Verão, convidados para
tocar no Jubileu de Isabel II de Inglaterra, recusaram: “Não quero entrar
nessas águas”, declarou Paddy Moloney, 63 anos e líder dos Chieftains: “Recusei
por duas vezes a condecoração da Ordem Real e, ainda que a situação pareça
estar a mudar, as coisas relacionadas com o Império Britânico não combinam
comigo…”.
Por todas estas razões, os U2 podem contentar-se com um
honroso segundo lugar. Porque os vencedores são os Chieftains. Os U2 são uma banda
pop que nasceu na Irlanda. Os The Chieftains são a música da Irlanda. Frank
Zappa foi rápido a percebê-lo. Em 1993, o malogrado compositor e guitarrista
foi perentório: “Os U2 podem ser a exportação mais popular e comercialmente bem
sucedida da Irlanda da atualidade, mas não há comparação entre a qualidade da
música que fazem e a dos Chieftains. (…) Tocamos juntos sempre que viajam até
cá e adoro a música que estes tipos fazem, as melodias e as mudanças de acordes
e, especialmente, a forma como a executam (…). Algo apenas possível de
Frank Zappa tinha razão
ao afirmar que são os Chieftains, e não os U2, a maior banda irlandesa de todos
os tempos
conseguir por quem está junto há 30 anos. As pessoas
descrevem os U2 como ‘rockers pós-modernos’, mas o que é que isso quer dizer? O
que é preferível: uma inventividade medíocre [NR: não nos esqueçamos de que era
o próprio espírito dos Mothers of Invention a falar…] ou uma ligação direta com
a música céltica? Os Chieftains são a sua própria cultura e ouço neles traços
não só da história céltica como da história universal, ecoando desde o
princípio do tempo”.
“The Wide
World Over”. O mundo inteiro é a casa dos Chieftains.
tesouros. Mas não nos enganemos. Embora
o grupo decano seja hoje um cidadão do mundo, a estrada principal continua a
ser aquela que a belíssima capa de “The Wide World Over” nos mostra: um caminho
pedregoso, algures no coração da ilha, ladeado de verde e de sonho, apontado
para onde o horizonte se confunde com as montanhas e estas com o céu. Apesar
dos convidados, apesar do convívio com outras músicas, “The Wide World Over”
tem as cores e o mistério da Irlanda (ainda a capa: as fotos do interior
impelem a comprar imediatamente um bilhete de viagem…).
Sinéad
O’Connor torna-se rainha da folk, em “The foggy dew”. Os The Corrs tentam estar
à altura da tradição, em “I know my love”. Ricky Scaggs
recorda o country reel “Cotton-eyed Joe”, do álbum “Another Country”. Nesta procissão de estrelas, na
qual se incluem Joni Mitchell, Van Morrison, Diana Krall, Sting, Linda Ronstadt
e os Stones, que traz de novo à baila sobretudo álbuns mais recentes como “The
Long Black Veil”, “Tears of Stone”, “Another Country”, “Water from the Well”,
“Long Journey Home” e “Santiago”, o brilho é intenso.
Mas
cerrando os olhos, veremos uma luz mais pura e que os maiores tesouros se
escondem em lugares predestinados: na festa coletiva celebrada ao vivo no
mítico pub de Matt Molloy, nos jigs, reels e airs e no erguer dos copos do
“set” “The munster cloak/an poc ar buile/Ferney Hill-Little Molly”, em “Morning
dew/Women of Ireland” ou em “Here’s a health to the company”. “Carolan’s
concerto” (de “The Celtic Harp”) devolve-nos a música da água e a memória do
harpista cego Turlough O’Carolan. Deliciosas, são o mínimo que se pode dizer da
combinação txalaparta basca mais Linda Ronstadt a cantar com Los Lobos uma
salerosa “Guadalupe” e da incursão chinesa em “Full of joy”.
Quanto aos
três originais, descontando a naturalidade da inclusão de “Chasing the fox”, um
tema mais antigo do grupo, aqui pela primeira vez em versão de estúdio, os
outros dois são meras curiosidades. A apropriação de “Morning has broken”, de
Cat Stevens, por Diana Krall e Art Garfunkel limita-se a dar um polimento
“trendy” a este “slow” que não constituiu qualquer mais valia para os anos 70,
enquanto a incursão na música jamaicana, “Redemption song”, de Bob Marley,
co-produzida por Don Was e cantada por Ziggy Marley, não torna convincente o
diálogo das “uillean pipes” com o espírito “rasta”. Mas desculpa-se, porque os
Chieftains continuam insaciáveis.
The
Chieftains, anfitriões, ou The Chieftains, bastiões da tradição. Cada um ouvirá
e apreciará “The Wide World Over” consoante a sua própria forma de encarar a
folk. Ambas fazem justiça a uma banda que há 40 anos se preocupa em aprofundar,
alargar as fronteiras e divulgar a cultura que lhe serviu de berço. Long live
the Chieftains!
The Wide World Over
RCA, distri. BMG
7|10
Sem comentários:
Enviar um comentário