16/02/2016

Pés para que vos quero [13º Festival Intercéltico]

Y 22|MARÇO|2002
música|intercéltico

Voltou. O festival folk com mais mística em Portugal. Doze edições, e os mais importantes nomes da folk, atestam a sua importância. No Coliseu, De Dannan, Kornog, Os Cempés, Roldana Folk.


pés para que vos quero

Sim, o Intercéltico está de volta, depois de, no ano passado, a sua trajetória ter sido interrompida, no ano de todos os buracos que transformaram o Porto num queijo. Mas, dando razão ao ditado que diz que o que tem de ser tem muita força, a normalidade foi reposta. O Intercéltico regressou para continuar. É tempo de serem reatados laços que, verdadeiramente, nunca se desfizeram. Serão três dias – hoje, amanhã e domingo – de música com raiz, mais do que na cultura, no imaginário céltico, mas também de aprofundamento da decifração de uma cidade – o Porto – que será o cenário ideal para a fruição deste tipo de música que teve berço no Norte da Europa.
            De Dannan, Kornog, os Cempés (na foto), Ghalia Benali & Timnaa e Roldana Folk são os nomes convocados para a 13ª edição do Intercéltico, como sempre uma iniciativa com a chancela da MC - Mundo da Canção. É este o cartaz. Os amigos do festival sabem, porém, que este não se esgota nos palcos, mas se estende por um clima feito de encontros que têm a folk como pano de fundo. Encontros que este ano bem poderão ter lugar à mesa do restaurante “Ribeiro” (passe a publicidade), onde, até 24, decorre uma semana de gastronomia portuguesa. Quanto mais satisfeito ficar o corpo, melhor será a disposição para, no Coliseu, o espírito acatar e saborear as danças e baladas que constituem o programa principal.
            Mas passemos os olhos pela ementa. Hoje é dia de Portugal e da Bretanha. Os nossos fazem-se representar pelos Roldana Folk, os gauleses pelos Kornog. Roldana Folk será o mesmo que dizer Roldana Fole. Porque entre os objetivos desta banda originária do Porto formada por ex-elementos dos Vai de Roda, Jig e Frei Fado d’El Rei está “dar a conhecer a sonoridade do acordeão”, no cruzamento de ambientes célticos (não digam “celtas”, que eles já desapareceram há muitos séculos…), portugueses, latino-americanos, folk e jazz, “antigos e modernos”.

            ocidente bretão. Das brumas da Bretanha chegam, a pingar lendas, os Kornog (“Ocidente”, em bretão). Vêm de longe, do tempo em que gravaram um álbum magnífico: “On Seven Winds”. Depois, já no final dos anos 80, pararam. A ressurreição ocorreu há meses, através de um novo álbum, simplesmente “Kornog”, como se de um novo começo se tratasse. É-o. Aos sons tradicionais da Bretanha transportados pela bombarda, juntam uma atitude contemporânea que os coloca numa primeira liga formada, entre outros, pelos Skolvan, Storvan, Strobinell ou Skeduz.
            Amanhã, sábado, está marcado o regresso dos galegos Os Cempés ao Intercéltico. Cem pés é muito pé ou nem por isso. Quem dançou como um tarado ao ouvi-los, em 1998, no café-concerto do Teatro Rivoli, já sabe que irá gastar as solas dos sapatos. Mas o que talvez não saiba é que, de então para cá, Os Cempés evoluíram de um irresistível grupo de baile para a banda mais sofisticada que em 1998 gravou “Capitán Re”. Agora, promovidos ao palco principal, trazem um Chapitô folk intitulado “Circo Montecuruto”, encenação circense de “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”. A inspiração e os motivos são, no entanto, mais sérios. Trata-se de um documento musical que reproduz o que aconteceu numa povoação piscatória galega em Junho de 1999, quando, nas palavras do acordeonista e sanfoneiro do grupo, Oscar Sanjurjo, “as forças de segurança do estado espanhol ocuparam a vila marinheira de Cedeira, cortaram os acessos e desalojaram pela força a lota, ameaçando a vida de homens e mulheres, crianças e velhos, quando estes reivindicavam pacificamente o direito a viver do seu trabalho no mar”. Diversão, sim, mas sem esquecer assuntos mais sérios. Os Cempés poderão, de resto, ser um caso sério deste festival.
            Depois de tantos pés, uma pausa no celtismo. Protagonizada pela tunisina Ghalia Benali, que virá acompanhada pelos músicos belgas que formam os Timnaa. “World music”, sinónimo de música apátrida. Norte de África, América Latina, Balcãs, França, Península Ibérica ou Brasil, desde que sirva, segundo a cantora, de “passaporte para muitas culturas, um microcosmos em que os séculos se reúnem para criar qualquer coisa nova”.
            E a fechar – soem as trombetas! –, mais um regresso. Este de peso. Dos De Dannan, instituição da música da Irlanda. Antigamente davam pelo nome, completamente diferente, de Dé Dannan, fazem da música tradicional do seu país o seu modo de vida desde a década de 70, quando tinham como cantora a ainda jovem Dolores Keane. Desde então fizeram questão de acolher algumas das melhores vozes femininas da folk irlandesa, como Mary Black e Maura O’Connell, além, claro, da ex-diva (os anos e o álcool ter-lhe-ão dado cabo da voz…) Dolores Keane. E Eleanor Shanley – a senhora que trazem a Portugal.
            Quanto a reportório, não são esquisitos. Tanto podem ferrar o dente numa canção dos Beatles, como passear-se pela “country” ou os sanguíneos Balcãs. Mas sempre com o coração deposto no altar da Ilha onde, diz-se, Lúcifer, aureolado pela luz da esmeralda, reinou antes de se ter tornado um anjo mau. Mas Deus estava atento. Conta-se, aliás, a seguinte anedota: um violinista morreu e foi para o céu; a certa altura, ouve um violino, a tocar uma música inconfundível; o violinista reconhece-o e diz para S. Pedro: “Não sabia que o Frankie Gavin tinha morrido…”. “Não, não morreu. Não é o Frankie Gavin que está a tocar.” “Impossível!”, insiste o violinista, “este som só pode ser do Frankie Gavin!”. S. Pedro suspira a atira, a rematar: “Não é. Esse que estás a ouvir é Deus, só que pensa que é o Frankie Gavin!”.


Porto de 12 anos

Poucos festivais em Portugal se poderão orgulhar de um currículo como o do Intercéltico. Aqui recordamos os elencos das anteriores 12 edições.

1986 | Alan Stivell (Bretanha), Vai de Roda (Portugal), Andy Irvine (Irlanda), Júlio Pereira (Portugal), Milladoiro (Galiza), Emilio Cao (Galiza).
Destaquem-se as presenças de Andy Irvine, dos Planxty, do histórico Stivell e do grupo nº1 da Galiza, Milladoiro.

1991 | Alan Stivell (Bretanha), Bagad Kemper (Bretanha), Na Lua (Galiza), Vai de Roda (Portugal), Gwendal (Bretanha).
A Bretanha no centro das atenções. Inesquecível a trovoada desencadeada pela Bagad Kemper, então ainda distante das revoluções que viria a encetar nos anos seguintes.

1992 | Matto Congrio (Galiza), Maddy Prior Band (Inglaterra), Bailia das Frores (Portugal), Llan de Cubel (Astúrias), Bleizi Ruz (Bretanha), De Dannan (Irlanda).
Maddy Prior fascinou, mas os De Dannan não deram hipótese à concorrência…

1993 | Barzaz (Bretanha), Battlefield Band (Escócia), Uxia (Galiza), Sétima Legião (Portugal), Barabán (Itália), The Chieftains (Irlanda).
A energia dos Battlefield Band e o baile sofisticado dos Barabán não foram suficientes para fazer sombra ao brilhantismo dos Chieftains, num concerto que permanece até hoje como um marco.

1994 | Amélia Muge (Portugal), Mac-Talla (Escócia), Leilia (Galiza), Márta Sebestyen & Muzsikás (Hungria), Kristen Nogues/Trio Mollard-Pellen (Bretanha), Déanta (Irlanda), Toque de Caixa (Portugal), Dervish (Irlanda).
De antologia o concerto dos Muzsikás. No “combate” particular travado entre as duas bandas irlandesas, triunfo esmagador para os Dervish. Cathy Jordan desencadeou paixões.

1995 | Realejo (Portugal), Boys of the Lough (Irlanda/Escócia), Skolvan (Bretanha), Fairport Convention (Inglaterra), Luar na Lubre (Galiza), Four Men & A Dog.
Outro combate, este inglês: os Four Men & A Dog, do gordo Gino Lupari, não deram chances aos decanos Fairport Convention. Nunca se terá dançado tanto no Intercéltico!

1996 | Gaiteiros de Lisboa (Portugal), Carlos Nuñez (Galiza), Strobinell (Bretanha), Värttinä (Finlândia), Brigada Victor Jara (Portugal), Arcady (Irlanda).
No ano de abertura à Escandinávia, bons nomes mas nenhuma vitória esmagadora. Os Arcady terão sido quem mais alto ergueu a fasquia.

1997 | Ronda dos Quatro Caminhos (Portugal), Sonerien Du (Bretanha), Jac-Y-Do (País de Gales), Berroguetto (Galiza), Pauliteiros de Malhadas (Portugal), Patrick Street (Irlanda).
Apesar dos pesos-pesados Patrick Street, houve quem jurasse que o troféu deveria ser entregue aos Berroguetto.

1998 | Deaf Shepherd (Escócia), Garmarna (Suécia), Caretos de Podence (Portugal), La Musgaña (Espanha), Solas (Irlanda).
Nível alto, mas nada de incendiário. Optamos pelos La Musgaña, em concerto especial com convidados do quilate de Manuel Luna.

1999 | Adufe (Portugal), Celtas Cortos (Espanha), Xosé Manuel Budino (Galiza), Dervish (Irlanda), Tri Yann (Bretanha).
Em ano de equívocos de programação, não foi difícil aos Dervish rubricarem mais um triunfo.

2000 | Ceolbeg (Escócia), Kepa Junkera (País Basco), Muxicas (Galiza), Lúnasa (Irlanda), Fausto (Portugal).

A estrela era portuguesa, mas a Irlanda fez, uma vez mais, a diferença. O basco mostrou ser um executante de outra galáxia.

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