cultura
TERÇA-FEIRA, 2 ABRIL 1996
Brigada Victor Jara e Arcady fecham com
chave de ouro as portas do Intercéltico
Semear para
colher, no Porto
A
colheita do Porto Intercéltico proporcionou, no terceiro e último dia do
festival, um Iranda “vintage” e um reserva coimbrã B.V.J. Aos produtores Arcady
e Brigada Victor Jara se deve uma das melhores provas deste ano. “Many Happy
Returns” e “Danças e Folias” foram os derradeiros brindes célticos a uma cidade
que soube fazer a festa.
Boa, média, excelente. A qualidade da
música pode variar. Mas o que permanece, o que cria raízes e lavra a terra onde
a música cresce, até ser floresta, é o que resulta da aliança entre o amor e o
trabalho. Lição que ficou, terminado mais um Intercéltico. Os espetáculos fazem
vibrar, uns mais, outros menos, mas é no recolhimento de uma conferência, no
calor de uma conversa ou na troca de um disco que a onda de fundo se propaga.
No domingo, dia de fecho da sétima edição do
Intercéltico, os portugueses Brigada Victor Jara trouxeram ao Porto a festa e a
multiplicidade de um país musicalmente riquíssimo. Pregões, pauliteiros,
baladas e danças, troca de sons e de culturas, convidados – uma cantora galega,
Raquel, o telurismo dos Açores, no teatro visceral de Zeca Medeiros, Tomás Pimentel,
no fliscorne, Dudas, na guitarra, André Sousa Machado, nas percussões – uma
paleta de timbres e de emoções fruto uma atividade que já leva anos de
existência, criaram a folia e a ternura. O Porto tributou-lhes merecida
homenagem, chamando-os ao palco, no final de uma atuação ao nível da que
alcançaram no dia de aniversário no S. Luiz, para dois encores e um
interminável aplauso.
Como vai sendo habitual, coube aos irlandeses a honra de
dar a volta à chave de fecho do festival. Nos antípodas da loucura rockeira
demonstrada no ano passado pelos Four Men & A Dog, os Arcady representaram
a Irlanda profunda. Sem cedências, obrigando o público a entrar a pouco e pouco
na sua teia de “jigs” e “reels”. Até à rendição. Baseados no reportório do seu
novo álbum, “Many Happy Returns”, estenderam um tapete onde a exuberância dos
compassos de dança abriu alas ao canto de uma grande senhora chamada Niamh
Parsons. Mesmo adoentada, Niamh cantou por três vezes “a capella”, estarrecendo
uma plateia que soube sentir o sagrado e por isso lhe concedeu a dádiva do
silêncio. Da escuta em catedral. Jacky Daly, no acordeão, e Johnny “Ringo”
McDonagh, no “bodhran”, tocaram como verdadeiros mestres que são. Em vez de
arriscarem dar cabo da caixa de velocidades, preferiram a aceleração em
suavidade. Sem ser empurrado, ao ritmo de passeio, quando se deu conta, o Terço
estava no meio de uma corrida de Fórmula Um. A espiral intercéltica de De
Danann – Dervish desenrolou mais uma volta com os Arcady.
E vamos ao balanço do Festival. Para não ficarmos atrás
dos prémios que o Intercéltico decidiu este ano, pela primeira vez, atribuir,
resolvemos também nós apresentar um Quadro de Honra para os melhores “celtas”
de 1996. Recebem este louvor: Público do Porto – pela sensibilidade e conheciemento
de que deu mostras. Uma das maiores ovações dos festival foi para uma
vocalização “a capella” da cantora dos Arcady, o que diz tudo. Niamh Parsons –
arquétipo da arte vocal feminina na Irlanda. A sua voz cura as maleitas da
alma. Carlos Nuñez – o génio que pairou nas alturas. Gaiteiros de Lisboa e
Brigada Victor Jara – por provarem que a música de um país pode ser maior do
que esse mesmo país. Delegação galega – vieram com a sua cultura, os seus
instrumentos musicais, a sua vontade de intercâmbio e de diálogo. O eixo Porto
- Vigo torna-se, dia após dia, mais forte que o de Porto - Lisboa… Atividades
paralelas – é assim que se criam raízes e se faz nascer paixões. Organização –
como de costume, impecável. Mundo da Canção e Câmara do Porto, nas respetivas competências,
teimam em fazer-nos felizes.
A desilusão pertenceu aos Strobinell. Não saíram da
casca. Corresponderam às expetativas as Värttinä, uma língua de fogo que varreu
o Terço, e os Arcady, por tudo o que atrás ficou dito.
Semear para colher. O mais importante de tudo foi ouvir,
ao longo dos três dias do festival, jovens perguntando onde se pode comprar e
quanto custa uma gaita-de-foles. Ama e faz o quiseres, dizia Santo Agostinho.
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