16/02/2018

Semear para colher, no Porto [7º Festival Intercéltico do Porto]


cultura TERÇA-FEIRA, 2 ABRIL 1996

Brigada Victor Jara e Arcady fecham com chave de ouro as portas do Intercéltico

Semear para colher, no Porto

A colheita do Porto Intercéltico proporcionou, no terceiro e último dia do festival, um Iranda “vintage” e um reserva coimbrã B.V.J. Aos produtores Arcady e Brigada Victor Jara se deve uma das melhores provas deste ano. “Many Happy Returns” e “Danças e Folias” foram os derradeiros brindes célticos a uma cidade que soube fazer a festa.

Boa, média, excelente. A qualidade da música pode variar. Mas o que permanece, o que cria raízes e lavra a terra onde a música cresce, até ser floresta, é o que resulta da aliança entre o amor e o trabalho. Lição que ficou, terminado mais um Intercéltico. Os espetáculos fazem vibrar, uns mais, outros menos, mas é no recolhimento de uma conferência, no calor de uma conversa ou na troca de um disco que a onda de fundo se propaga.
            No domingo, dia de fecho da sétima edição do Intercéltico, os portugueses Brigada Victor Jara trouxeram ao Porto a festa e a multiplicidade de um país musicalmente riquíssimo. Pregões, pauliteiros, baladas e danças, troca de sons e de culturas, convidados – uma cantora galega, Raquel, o telurismo dos Açores, no teatro visceral de Zeca Medeiros, Tomás Pimentel, no fliscorne, Dudas, na guitarra, André Sousa Machado, nas percussões – uma paleta de timbres e de emoções fruto uma atividade que já leva anos de existência, criaram a folia e a ternura. O Porto tributou-lhes merecida homenagem, chamando-os ao palco, no final de uma atuação ao nível da que alcançaram no dia de aniversário no S. Luiz, para dois encores e um interminável aplauso.
            Como vai sendo habitual, coube aos irlandeses a honra de dar a volta à chave de fecho do festival. Nos antípodas da loucura rockeira demonstrada no ano passado pelos Four Men & A Dog, os Arcady representaram a Irlanda profunda. Sem cedências, obrigando o público a entrar a pouco e pouco na sua teia de “jigs” e “reels”. Até à rendição. Baseados no reportório do seu novo álbum, “Many Happy Returns”, estenderam um tapete onde a exuberância dos compassos de dança abriu alas ao canto de uma grande senhora chamada Niamh Parsons. Mesmo adoentada, Niamh cantou por três vezes “a capella”, estarrecendo uma plateia que soube sentir o sagrado e por isso lhe concedeu a dádiva do silêncio. Da escuta em catedral. Jacky Daly, no acordeão, e Johnny “Ringo” McDonagh, no “bodhran”, tocaram como verdadeiros mestres que são. Em vez de arriscarem dar cabo da caixa de velocidades, preferiram a aceleração em suavidade. Sem ser empurrado, ao ritmo de passeio, quando se deu conta, o Terço estava no meio de uma corrida de Fórmula Um. A espiral intercéltica de De Danann – Dervish desenrolou mais uma volta com os Arcady.
            E vamos ao balanço do Festival. Para não ficarmos atrás dos prémios que o Intercéltico decidiu este ano, pela primeira vez, atribuir, resolvemos também nós apresentar um Quadro de Honra para os melhores “celtas” de 1996. Recebem este louvor: Público do Porto – pela sensibilidade e conheciemento de que deu mostras. Uma das maiores ovações dos festival foi para uma vocalização “a capella” da cantora dos Arcady, o que diz tudo. Niamh Parsons – arquétipo da arte vocal feminina na Irlanda. A sua voz cura as maleitas da alma. Carlos Nuñez – o génio que pairou nas alturas. Gaiteiros de Lisboa e Brigada Victor Jara – por provarem que a música de um país pode ser maior do que esse mesmo país. Delegação galega – vieram com a sua cultura, os seus instrumentos musicais, a sua vontade de intercâmbio e de diálogo. O eixo Porto - Vigo torna-se, dia após dia, mais forte que o de Porto - Lisboa… Atividades paralelas – é assim que se criam raízes e se faz nascer paixões. Organização – como de costume, impecável. Mundo da Canção e Câmara do Porto, nas respetivas competências, teimam em fazer-nos felizes.
            A desilusão pertenceu aos Strobinell. Não saíram da casca. Corresponderam às expetativas as Värttinä, uma língua de fogo que varreu o Terço, e os Arcady, por tudo o que atrás ficou dito.
            Semear para colher. O mais importante de tudo foi ouvir, ao longo dos três dias do festival, jovens perguntando onde se pode comprar e quanto custa uma gaita-de-foles. Ama e faz o quiseres, dizia Santo Agostinho.

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