Pop Rock
1991
os melhores
do ano
ELETRÓNICA
O ano que
passou foi de triunfo para os eletrões. A eletricidade sempre foi um bom
circuito de informação. Os sinais não enganam: passado e futuro tocam-se e
confundem-se. Na Europa, sobretudo, de novo se constrói a torre de Babel.
Delerium
Stone
Tower
(Dossier)
Produto típico da ala negra dos pseudomagos que apostaram em dar cabo das
nossas cabeças, por dentro e por fora. Neste caso não há agressões psíquicas
abaixo dos 2Hz ou acima das “frequências caninas”, nem grandes rituais de
sangue provocados pelo rebentamento de tímpanos. Pelo contrário, embora na capa
proliferem as habituais imagens de corpos em agonia, caveiras e arquiteturas de
pesadelo, os Delerium, fação “ambiental” dos Front Line Assembly, enveredam
pelas religiosidades obscuras, abrindo paisagens de sombra e labirintos por
onde divindades pagãs aproveitam para se infiltrar. Longos mantras
etno-demoníacos que incluem na versão CD cerca de meia hora extra de hipnose.
Um tratado de necromancia que pode provocar habituação à paranóia. Para ouvir
de noite, com cuidado.
Hans-Joachim
Roedelius
Der
Ohren Spiegel
(Multimood)
Dividido entre a devoção ao piano, a Erik Satie e Alban Berg e a
nostalgia das explorações eletrónicas de antanho realizadas com Dieter Moebius,
nos Cluster, Roedelius consegue aqui o equilíbrio perfeito entre duas pulsões
contraditórias, a simplicidade e o barroco. Exorcizado o espectro das teclas de
marfim em “Piano Piano”, para piano solo, Roedelius revela-se como um arquiteto
de sons visionário, ombreando com Brian Eno na construção de estruturas
tímbricas e harmónicas (no seu caso bastante mais complexas que as do autor de
“Discreet Music”) que parecem desafiar a gravidade. “Reflektorium”, o tema mais
longo do CD, tem o esplendor, os reflexos matizados e o requinte do pormenor de
um candelabro de cristal.
Holger Hiller
As
Is
(Mute)
Antigo membro dos Palais Schaumburg, autor de óperas sobre “calças” e
auditor atento de Stockhausen, Faust, Einstuerzende Neubauten e de música pop
num rádio a pilhas mal sintonizado, Holger Hiller produz música dourada a
partir de detritos e excrescências sonoras a partir de excertos de Wagner.
Diverte-se a misturar pedaços de sinfonias, de ruídos, de vozes e melodias
incertas no seu cadinho de alquimista louco – o “sampler”, máquina mágica onde
nada se perde e tudo se trasforma. À semelhança dos geniais “Ein Bundel Faulnis
in der grube” e “Oben im Eck”, “As Is” é “como é”, um programa musical, na
aparência sem sentido, mas onde a cada segundo o som dispara em direções
surpreendentes, das refrações “dub” à pop do outro lado do espelho. O discurso
da esquizofrenia tem a sua lógica própria.
Kraftwerk
The
Mix
(EMI)
Ralf Hütter e Florian Schneider não vão atrás da Europa, a Europa é que
lhes segue no encalço. Os dois alemães vestiram de novo as fardas de humanóide,
carregaram baterias, ligaram os interruptores do estúdio Kling Klang e
procederam como cirurgiões-robô especializados, com bisturis laser e uma ironia
não menos cortante. Operaram maravilhas de cirurgia plástica nos clássicos da
“techno-pop” industrial gerados pela maquinaria do Rur e polidos no paraíso de
cristais de quartzo e fibra ótica de “Silicon Valley”: “The Robots”, “Computer
Love”, “Autobahn”, “Radio Activity”, “Trans Europe Express” – binários e
insinuantes como sempre, e agora mais dançáveis do que nunca. Regresso em forma
ao futuro.
O Yuki
Conjugate
Peyote
(Multimood)
Alinhados com os Lights in a Fat City, afilhados de Jon Hassell e das
músicas do “quarto mundo”, atentos às pulsações das culturas e dos mitos
africanos e aborígenes, os O Yuki Conjugate desenham os contornos de uma
“realismo fantástico” que povoam de monstros projetados pela tecnologia
eletrónica. “Peyote”, como o anterior “Into Dark Water”, sendo mais um produto
representantivo da grande síntese do final do milénio, tendência “novo
primitivismo”, avança por alamedas laterais, por via da alucinação, abolidas as
noções tradicionais do espaço e do tempo. Música intuitiva, elemental,
naturalista por essência e ambígua na condição de ícone da nova idade das
trevas. Se “Into Dark Water” era a escuridão do fundo oceânico, “Peyote” é a
miragem do deserto, a vibração desfocada, o retorno ao incriado.
WORLD
1991 foi
sobretudo o ano de reedições em CD, de parte de discografias importantes – dos
Planxty, Chieftains, Malicorne, Milladoiro e Steeleye Span. Tudo importações,
claro. Outras “novidades” chegaram ao mercado nacional pelo menos com um ano de
atraso, razão por que não puderam constar da presente lista.
Ad Vielle Que
Pourra
Come
What May
(Green
Linnet)
Originários do Canadá, os Ad Vielle Que Pourra pretendem “unir o
caldeirão de influências americano às raízes europeias”. Aliam o virtuosismo,
ecletismo e magia, um pouco à maneira de uns Blowzabella mais extrovertidos. Há
na música dos Ad Vielle uma energia contagiante, resultante da correta
assimilação e articulação da tradicção francesa, e em particular da bretã, com
a música de realejo, as valsas palacianas ou a canção de cabaré, em combinações
instrumentais, ora frenéticas, ora bizarras, da bombarda e da gaita-de-foles
flamenga, da sanfona, do violino, do acordeão e do bouzouki… Música para
“viajar pelo mundo ou pelo interior de nós próprios”.
Catherine-Ann
MacPhee
Chi
Mi’n Geamhradh
(Green
Trax)
Catherine canta em gaélico as habituais histórias da história escocesa,
às quais a mistura das brumas célticas com as névoas não menos poéticas do “whisky”
retira um pouco de credibilidade. Mas a falta de rigor científico e o tom
pueril de canções como aquela que narra os desgostos amorosos de “um jovem
vendo a rapariga que ama abandoná-lo, para casar com outro, o que lhe parte o
coração [ao jovem, não ao outro]” são compensados pela excelência do canto.
Entre um acompanhamento instrumental invulgar, a harpa cintilante de Savourna
Stevenson garante, por si só, o sortilégio.
Hamish Moore
& Dick Lee
The
Bee Knees
(Green
Linnet)
Caminho difícil e excitante, o da fusão das sonoridades tradicionais com
o jazz. John Surman (“Westering Home”), Ken Hyder’s Talisker ou Jan Garbarek
(“I Took up the Runes” e “Rosensfolle”, este com Agnes Buen Garnas), do lado do
jazz, já o haviam tentado com sucesso. Do “outro lado”, registe-se a fase
inicial dos Gwendal, de “À vos Désirs”, os suecos Filarforket, em “Smuggel” os
ex-jugoslavos Zsarátnok, em “Holdudvar”, June Tabor em “Some Other Time”,
Savourna Stevenson, em “Tweed Journey”, e aproximações pontuais da malograda
Sandy Denny. “The Bee Knees” vive do diálogo/confrontação entre a
gaita-de-foles e o “tin whistle” tradicionais de Hamish Moore, e os saxofones e
clarinete-baixo de Dick Lee. Os puristas poderão franzir as sobrancelhas. Mas
as pulsações do coração e as pernas nem por isso deixarão de acelerar.
Les Nouvelles
Polyphonies Corses avec Hector Zazou
Les
Nouvelles Polyphonies Corses
(Philips)
Sensível ao poder do eixo que liga a pedra e a terra ao céu, Hector
Zazou, num exercício que acaba por se assumir como ponto culminante e corolário
lógico de “Géographies” e “Géologies”, soube manter os computadores à distância
exata da religiosidade e do arrebatamento do canto corso, deixando-lhes o
espaço necessário à oração e à elevação. Os sons eletrónicos ou da profusa
instrumentação utilizada neste projeto não interferem com a energia do canto,
antes lhe servem de alavanca de apoio, facilitando-lhe a ascese e constituindo
um estímulo adicional ao discurso da alma. A constelação de “figuras” presentes
– Ryuichi Sakamoto, Ivo Papasov, John Cale, Steve Shehan, Manu Dibango, Richard
Horowitz, Jon Hassell – participa e assiste fascinada à cerimónia.
Ron Kavana
Home
Fire
(Special
Delivery)
Permanecendo de certo modo à margem do circuito “folk” britânico
tradicional, Ron Kavana é um rebelde apostado em dotar a música irlandesa de
uma carga política que tende, por vezes, a ser minorizada, em detrimento do seu
lado poético-mitológico. “Home Fire” recusa o perfecionismo de estúdio que, nos
últimos anos, tem vindo a retirar muito da espontaneidade que caracterizou o
grande “boom” da década de 70, traduzido no aparecimento de grupos como os
Planxty, Bothy Band, De Dannan e Five Hand Reel, entre outros. Solução de
compromisso entre as sonoridades mais marcadamente célticas das danças e dos
instrumentais, e a importância dada às palavras, nas baladas de tom
intervencionista. Mil vezes mais eficaz que Billy Bragg e infinitamente mais
rico em termos musicais.
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